Tuesday 31 October 2017

A pessoa que precisamos de ouvir

Grada Kilomba, The Kosmos 2 (Detail) © Esra Rotthoff, courtesy of Maxim Gorki Theatre. (imagem retirada do website Contemporary And)

Há umas semanas, apareceu no Público um artigo intitulado Grada Kilomba é a artista que Portugal precisa de ouvir
. Até lá, nunca tinha ouvido falar de Grada Kilomba. Na semana que passou, foram inauguradas duas exposições da artista em Lisboa, aparentemente as primeiras na sua terra natal, apesar de Grada Kilomba já ter uma carreira intensa no estrangeiro. Um facto “perversamente coerente”, como dizia o Público, porque “entrar no trabalho de Grada Kilomba – nas suas instalações de vídeo e som, nas suas performances, nas suas leituras encenadas, nos seus textos – é ter de lidar com a história violenta do colonialismo e pós-colonialismo, história na qual Portugal está profundamente entranhado mas que teima em fingir que não é nada com ele.”

Lembro-me ainda do choque e de alguma dor que senti quando fui pela primeira vez confrontada com uma versão “outra” da história do meu país, diferente daquela que me tinha sido ensinada na escola ou que partilhávamos em casa (escrevi sobre isso no post As histórias que contamos a nós próprios). Hoje, quando isto acontece, não fico chocada, mas ainda, de vez em quando, sinto dor. E também algum prazer intelectual, por me sentir desafiada e por continuar a aprender e a descobrir outras versões e, em última análise, outras pessoas.

Lisboa – Capital Ibero-Americana de Cultura 2017 colocou firmemente as questões da escavatura, do colonialismo, do pós-colonialismo e do racismo no centro da nossa reflexão. As várias entidades culturais e outras que aceitaram o desafio têm respondido com menor ou maior eficácia – e talvez também honestidade, quanto à intenção de discutir estes temas. Uma das primeiras exposições que vi, por exemplo, foi a do Museu Nacional de Arqueologia, com o título curioso Um Museu. Tantas coleções. O Museu afirma no seu website que o projecto da Câmara Municipal de Lisboa Testemunhos da Escravatura – Memória Africana  foi um “Projecto motivador que conduziu à revisão e reapreciação de Coleções menos conhecidas deste Museu”. Como visitante, não consegui identificar ou apreciar os resultados desse trabalho, dado que as legendas da exposição limitavam-se a uma simples descrição dos objectos expostos. Podemos, realmente, reflectir sobre e debater a escravatura – a deshumanização e a dor que causou e continua a causar - através de textos como o da imagem que se apresenta em baixo?

Legenda digital da exposição do Museu Nacional de Arqueologia (clicar na imagem para aumentar)

Voltando agora à Grada Kilomba, no passado Sábado visitei a exposição Secrets to Tell no MAAT. Uma exposição pequena e rica, uma boa introdução, para mim que não conhecia o seu trabalho, ao universo da artista, ao seu pensamento, às suas formas de se exprimir, às questões que procura debater connosco. No entanto, quando o visitante entra na exposição (seguindo o percurso mais habitual, que é descendo a rampa ou a escadaria da Galeria Oval) não encontra o texto introdutório da exposição, como faria sentido (e como acontece, aliás, se a entrada for outra, no entanto, contrária ao sentido habitual da visita). Primeiro, portanto, temos os vídeos da leitura encenada de Plantation Memories, depois encontramos a peça Table of Goods e só depois vemos, no fundo, o texto introdutório da exposição. Nessa altura, já alguns visitantes passaram ao lado de Table of Goods, peça sobre a qual o museu pouco tem a dizer ao visitante (ver tabela em baixo), e já exclamaram “Isto é que é arte?”. Se a intenção do museu, de qualquer museu, é envolver na reflexão pessoas que já estudaram em casa antes de vir, nada do que disse aqui é particularmente relevante. Mas se não é – e penso que não é – a forma de expor e o que se diz sobre as peças expostas deve ser repensado. Devo também dizer que considerei o texto introdutório do MAAT muito bom - para mim, com trabalho de casa feito -, mas, para poder envolver mais pessoas, a sua linguagem, extensão e apresentação gráfica teriam também que ser repensadas (ver imagem em baixo).

Tabela da obra "Table of Goods", MAAT ((clicar na imagem para aumentar)


Texto introdutório da exposição "Secrets to Tell", MAAT (clicar na imagem para aumentar)


Logo a seguir à exposição, fui assistir à conversa de Grada Kilomba com Carla Fernandes (activista, jornalista e responsável pelo radio-blog Afrolis) no Teatro Maria Matos. Com esta conversa, encerra o ciclo Descolonização, promovido por este teatro. Um ciclo que procurou abordar, conforme explica na brochura a curadora Liliana Coutinho, duas libertações: a das terras ocupadas por Portugal, há mais de 40 anos, e a do pensamento e do comportamento, que alimentaram a cultura colonial e as relações de desigualdade e de exploração, e que persistem.

A primeira impressão, enquanto estava ainda à espera para entrar na sala, é que nunca tinha visto tanta gente negra no Maria Matos. Mesmo quando foi o espectáculo Libertação, há pouco tempo, e mesmo quando foi o Moçambique, no ano passado. Fiquei, por isso, a pensar se o facto de estes serem trabalhos de artistas brancos, e apesar de envolverem intérpretes negros, significa que não são suficientemente convidativos ou interessantes para os negros ou se não se sentem sequer bem-vindos. E o que é que terá feito a diferença neste caso? A Grada Kilomba, que, até há pouco tempo, poucos conhecíamos? Talvez a comunidade negra a conhecesse há mais tempo? Ou terá sido o facto da conversa ser moderada por uma jornalista e activista negra, que trouxe o seu público? Penso que valeria a pena tentar perceber melhor porque é que a comunidade negra aceitou este convite e não outros, por muito que se possa pensar que a temática lhes fosse relevante.

Li mais tarde que Mamadou Ba também comentou sobre esta presença negra na sua página no Facebook: “A questão do lugar é das mais centrais no debate sobre o racismo em sociedades onde a colonialidade assume relevância cultural. Por ela e através dela passam muitas disputas epistemológicas, teóricas, doutrinárias e ideológicas que ultrapassam o debate da mera formulação teórica da descolonização. E, hoje na conversa entre a Carla Fernandes e a Grada Kilomba, sem menosprezar as várias possibilidades de debate que daí surgiram e são muitas, ficou-me na retina a presença significativa do corpo negro num espaço tradicionalmente de privilégio branco. (...) Ficou claro que não faltam Negras e Negros que querem e podem falar de si, sobre si, sobre e com a sociedade e o seu olhar sobre eles/as. Os sujeitos racializados Negros afirmam assim, com a escolha do momento, da força e da circunstâncias do seu aparecimento no espaço público, uma posição política clara. Mais do que objectos históricos de uma condição histórica determinada, são sujeitos políticos que lutam pela sua afirmação.” Aqui temos uma primeira resposta, que foi, para mim, reveladora, mas que não responde a todas as perguntas acima colocadas. Por isso, repito que valeria a pena tentar perceber melhor. 

Em relação à conversa em si, durou cerca de duas horas, mas confesso que a primeira parte (até o público começar a intervir) teve pouco interesse para mim. Em vez de se falar de Grada Kilomba (pessoa – mulher – negra – académica – artista), falou-se demasiado, na minha opinião, de obras concretas presentes nas duas exposições em Lisboa, que, por terem sido inauguradas dois dias antes, não tinham sido ainda vistas por muitos dos presentes. Esta parte da conversa trouxe-nos pouco. Tivemos a oportunidade de conhecer melhor Grada Kilomba, o seu pensamento e forma de estar na vida, graças também às perguntas /partilhas de alguns membros do público, “perguntas – poemas”. Fiquei, sinceramente, impressionada: pela sua forma de estar, a voz, a expressão contida mas não, por isso, menos emocionante, e sobretudo pela escolha de palavras e a forma como as proferia. Um pensamento claro, sólido, sensível, informado, realista e honesto.

O terceira impressão que me ficou dessa conversa tem a ver com a escuta e o silenciamento, de que tanto se falou naquelas duas horas. Tem a ver, nas palavras de Grada Kilomba na brochura do teatro, com o “quem pode efectivamente falar, o que acontece quando se fala e de que é que se pode falar”. A última intervenção do público, muito próximo do encerramento, veio da parte de uma senhora que afirmou “não ter percebido” se a Grada Kilomba considerou que não podia ser professora universitária em Portugal por ser negra. Muito rapidamente se percebeu que se tratava de uma pergunta retórica. O que a senhora quis partilhar foi a sua ideia de que Portugal não está assim tão mal, porque há uma professora negra na Facudade de Letras, porque houve o espectáculo Libertação no Maria Matos e Os Negros no Teatro São Luiz. De imediato, surgiram vozes na sala a contrariar a senhora. Pediu para a deixarem falar, disse: “Deixem-me falar, por favor, porque quando o ‘outro’ começa a falar...”. Foi interropida mais duas ou três vezes. A moderadora não interveio, a não ser para lhe pedir para ser mais breve.

Ficou-me o pomenor de ela se ter colocado no lugar de ‘outro’. Sabia, claro, que o que estava a dizer não reuniria consenso. Quis provocar? Estava a partilhar uma opinião sincera? De qualquer das formas, as repetidas tentativas de interrupção deixaram-me incomodada. E talvez não tanto a reacção de pessoas que estão fartas de ouvir certas coisas, mas a não intervenção da moderadora no sentido de defender, perante a maioria - que se sentiu forte, como todas as maiorias-, o direito de falar.

Uma das principais preocupações das entidades culturais que querem fazer parte do debate público sobre uma série de questões que dividem as sociedades é como envolver quem tem uma opinião contrária. Se o objectivo é promover um diálogo que possa fazer as pessoas repensar algumas das suas ideias, perante outros factos, conhecendo de perto outras pessoas, não se pode desejar conversas de consenso. Por muito pouco interessantes ou inteligentes que as opiniões contrárias possam parecer. Sentimo-nos todos mais confortáveis no meio de pessoas que pensam como nós, que reforçam as nossas convicções. Mas pouco ou nada vamos conseguir mudar se não permitirmos ao ‘outro’ falar e ser ouvido. Se a senhora que colocou a questão nos deu rapidamente a conhecer o seu ponto de vista, deu-nos também a entender que passou duas horas exposta a opiniões que contrariam a sua visão. Mas ficou para ouvir e não interrompeu ninguém. Aliás, teve a coragem de ir assistir a uma conversa que se sabia a priori que não ia ao encontro do seu ponto de vista, da sua visão do mundo. Mas foi; e já tinha visitado as exposições; e disse ainda que, depois de ter ouvido a Grada Kilomba, voltaria a visitá-las. Não é isso que se pretende? Não será esta também uma pessoa que precisamos de ouvir? Por muito que nos custe? Por muito que nos irrite?

Acredito que esteja a olhar para tudo isto da forma fria (ou serena) como quem não vive o racismo na pele possa ter. No entanto, acredito na Cultura como um espaço de encontro. Não para conversas neutras ou de consenso, como a maioria dos espaços culturais nos tem habituado, mas para conversas de confronto, apaixonadas, intensas, onde o direito de falar seja defendido e respeitado e onde haja capacidade de gerir uma pequena ou grande provocação ou uma honesta opinião contrária. Acredito que a resposta da Grada Kilomba, assim como as suas Plantation Memories, terão abalado um pouco a visão da senhora que colocou a pergunta. Mais, muito mais, do que as vozes que tentaram silenciá-la.

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