Sunday 24 July 2016

Gerir museus

Imagem retirada do Facebook do Museu Nacional de Arte Antiga

A reclamação de um novo estatuto jurídico, de um estatuto especial, por parte do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) tem resultado num debate muito saudável no meio dos museus, sobretudo (e infelizmente) depois do anúncio do Ministro da Cultura que este estatuto irá mesmo ser atribuído. Independentemente das críticas, positivas ou negativas, que temos a fazer sobre este caso e sobre este processo, não há dúvida que devemos este debate, muito necessário, ao MNAA, ao seu director, António Filipe Pimentel, e a toda a equipa do museu*.

Nestes últimos dias, alguns colegas partilharam a sua opinião publicamente: Nuno Vassallo e Silva (NVS), Raquel Henriques da Silva (RHS) e Luís Raposo (LR), através de artigos de opinião no Público; Maria Isabel Roque (MIR) e Nandia Foteini Vlachou (NFV) nos seus blogs a.muse.arte e I Know Where I’m Going, respectivamente. Em todos estes textos houve pontos com os quais concordei, outros com os quais discordei, outros ainda que não me pareceram relevantes para esta discussão e, por fim, pontos que não encontrei e que me parecem importantes. Gostaria, por isso, de os colocar na mesa para poderem ser equacionados, aproveitando para comentar sobre algumas das opiniões expressas pelos colegas.

Nos últimos três anos, temos assistido a uma intensa presença do MNAA nos meios de comunicação social, resultado da sua igualmente intensa actividade: a inauguração de uma série de exposições temporárias (com muitas obras ou apenas com uma), a iniciativa “Coming Out”, a campanha “Vamos pôr o Sequeira no Lugar Certo” e, mais recentemente, a reabertura do 3º piso do museu. Paralelamente a esta actividade e visibilidade, começou a surgir e a intensificar-se, da parte do próprio Museu, a afirmação de ser “O Primeiro” ou “O Grande” museu de Portugal, ou até um dos dois grandes museus ibéricos. E depois, dir-se-ia “naturalmente”, a reclamação de um estatuto especial. Penso que este relato muito sucinto apresenta a sequência do desenvolvimento da estratégia do MNAA, da forma como a tenho percepcionado “de fora”.

Com este caso em mente, os pontos que queria trazer para a discussão são os seguintes:

1. Em primeiro lugar, se é sobre o modelo de gestão que estamos a reflectir e se concordamos (parece-me que sim) que o actual modelo não funciona - pelo contrário, torna os museus nacionais pouco ou nada autónomos, em várias frentes, e estrangula a sua identidade, actividade e criatividade –, então, esta reflexão não pode ser pontual, não pode incidir sobre um museu apenas, dando a entender, como refere LR, que estamos simplesmente a “sucumbir a agendas mediáticas temporãs”. Não se podem tomar decisões de gestão nem construir estratégias que sabemos que dizem respeito a um todo usando uma visão curta. As decisões de gestão são tomadas olhando para o futuro, tendo uma visão a longo prazo - a pensar no desenvolvimento e na sustentabilidade do projecto - e resultam em estratégias com objectivos de curto e médio prazo, e com ferramentas de avaliação previamente definidas.

2. Olhando, assim, para o todo, penso também que um processo como este não pode ser a priori, para além de pontual, divisivo; não se pode insinuar que dentro da família existem equipamentos de primeira e de segunda, sendo que só os “de primeira” merecem ver os seus problemas avaliados e resolvidos. Tal como diz RHS, não defendo o “todos pobrezinhos, como o meu salazarista livro de instrução primária ensinava”. Mas também não posso concordar com ela que uma decisão para a atribuição de um estatuto especial a apenas um museu nacional possa ser tomada porque “É esta equipa que merece, neste momento, que se aceite o seu desafio”, acrescentando “Outras se chegarão à frente”. Não há dúvida que a equipa do MNAA se tem mostrado extremamente activa e empenhada e que o seu trabalho tem tido grande visibilidade nos meios de comunicação social. No entanto, quem conhece a realidade dos museus nacionais (e outros) nos últimos anos, quem conhece as condições em que desenvolvem o seu trabalho, sabe também que é graças às suas equipas – empenhadas, com amor pelo que fazem e com enorme sentido de responsabilidade, mesmo quando desmotivadas - que os museus continuam a funcionar e a prestar um serviço à sociedade. Os meios de comunicação social podem não saber, por “culpa” ou não dos próprios museus, mas quem tutela ou trabalha no sector tem obrigação de saber. Estas equipas são os grandes mecenas da cultura em Portugal. Estas equipas merecem ter condições de trabalho.

3. Como bem refere NVS, “Constrangimentos administrativos para não dizer burocráticos, défice de pessoal especializado, capacidade de resposta pronta aos desafios, são problemas comuns em toda a máquina do Estado.” Portanto, mais do que olhar para casos pontuais, é necessário, urgente mesmo, que se olhe para os museus nacionais e que se defina uma política para eles (a longo prazo, “transgovernamental”), no âmbito da qual se deverá também reflectir sobre o modelo de gestão, e que possa servir de base para os museus construírem os seus planos estratégicos.

4. Não pode haver plano estratégico, no entanto, nem se pode avaliar pedidos, acções e resultados sem haver uma missão clara, escrita, publicitada e específica para cada um destes equipamentos. As estratégias não se desenham ad hoc, nem se pode debater sobre o bom ou o mau desempenho de um museu deixando ao critério de cada um de nós definir o que é que dele se espera. Desta forma, NVS pode considerar que a missão de um museu como o MNAA é “narrar a história de Portugal”, ao mesmo tempo que NFV defende que através da sua colecção o MNAA “has the responsibility to use this cultural legacy to criticize the country’s imperial past, dialogue with other countries that attempt to do the same and work towards breaking down the traditional conceptual divisions between East and West”. Quem procurar saber de que forma qualquer uma destas orientações se enquadra na missão do MNAA e até que ponto o seu desempenho tem sido bom nesse sentido, não poderá saber, porque o MNAA, tal como todos os museus nacionais, não tem a sua missão definida ou, se a tem, não a torna pública.

5. Neste mesmo sentido (da necessidade de haver uma missão definida, um plano estratégico, objectivos concretos e indicadores de desempenho) enquadra-se também, na minha opinião, o debate à volta do argumento da “primacia” do MNAA, ou de qualquer outro museu. Acrescenta-se aqui aos requisitos prévios a percepção em relação ao valor público dos museus, ou seja o valor que a sociedade lhes atribui com base na percepção do seu contributo. Sim, porque os museus não existem em primeiro lugar para os profissionais e especialistas, existem para toda a sociedade. Um museu nacional (tutelado e apoiado pelo estado, ou seja, por todos os contribuintes) tem responsabilidades para com todos os cidadãos. Assim, não é suficiente para esta reflexão que NVS afirme que “É totalmente incontestável a importância cimeira do museu e das suas colecções” [aliás, LR contesta-a “seja qual for a bitola usada (amplitude, singularidade, estudo e conservação do acervo, formação de públicos, especialmente nacionais, número de visitantes, taxa de cobertura de despesas através de receitas próprias, etc.”)]; ou que MIR diga que é o nosso museu de referência (...) por todos os motivos, este é o nosso grande museu, tal como o são, por exemplo, o Museu Britânico, para Inglaterra, ou o Museu do Louvre, para França”. Eu perguntaria “Porquê?”. Não li algo mais concreto que permitisse fundamentar estas afirmações. Nem consigo, como museóloga, encontrar eu própria os fundamentos.

Pelo contrário, algo que marcou a minha reflexão em relação à estratégia do MNAA - e que me parece que passou despercebido ou foi ignorado ou foi desvalorizado pelo sector – foi o “roubo” de quatro pinturas do “Coming Out” e o seu transporte e exposição na zona do Miratejo, na margem sul. Nesta iniciativa, cívica, que procurou alargar a actividade de um museu nacional e partilhá-la noutros meios, vi uma reivindicação de acesso, um lembrete que “nós também somos vossos públicos, nós também somos contribuintes”. Não faz sentido para esta discussão questionar até que ponto o MNAA, através da actividade que tem desenvolvido, tem conseguido diversificar o perfil dos seus visitantes, chegar às pessoas que continuam a não se relacionar com ele? Não faz sentido procurar perceber as razões desta continuada nao-relação da maioria dos cidadãos com este e outros museus nacionais?

Quadro da iniciativa do MNAA "Coming Out", "roubado e exposto no Miratejo. (imagem retirada do jornal Observador)

A atribuição, por isso, da “primacia” não deveria levar em consideração apenas o desejo do próprio museu ou apenas a avaliação feita por especialistas, que se limita, até agora, à avaliação da colecção. Um museu é mais do que a sua colecção, é o que faz com ela. A opinião ou percepção dos cidadãos também conta. Deste ponto de vista, iremos provavelmente descobrir que existem várias “primacias”.

6. Chegando à questão da autonomia financeira, parece que ela já existiu (há referências nos textos de RHS e LR), mas não sei se existiu no formato reclamado por Dalila Rodrigues, que propôs que a receita gerada (bilheteira, loja, mecenato) ficasse no museu e não fosse para o bolo geral do então Instituto de Museus e Conservação. Não me parece que o que está a ser reclamado neste momento é retirar à DGPC as verbas correspondentes às despesas de funcionamento e pessoal do MNAA e entregá-las ao museu, como diz NVS, porque isto pouco ou nada resolveria. Nem considero que a solução possa passar por um reforço da DGPC (o funcionamento da EGEAC – Empresa Municipal da Cultura em Lisboa, traz lições importantes neste sentido). No entanto, não me parece também que, com base nas experiências que houve até agora, possamos afirmar que já existem condições para os museus em Portugal funcionarem como os seus pares norte-americanos, britânicos, franceses, etc., sobretudo no que diz respeito à angariação de fundos, para além dos atribuídos pelo Estado. Esta aprendizagem é um caminho longo, mas necessário, e sim, convém ser contemplada neste debate, associada à necessidade de se promover também em Portugal o mecenato cultural (outro caminho longo e necessário).

RHS afirma que defende “há muitos anos que a Cultura deve ser um laboratório para experimentar (e avaliar) novos modelos de gestão da coisa pública que são absolutamente indispensáveis. É isso que vai acontecer porque o Museu [MNAA] largamente provou que o sabe fazer e tem reconhecido suporte de mecenas, amigos e cidadãos interessados.” Concordando com a primeira parte da afirmação, levantam-se-me questões em relação à segunda. O MNAA celebrou várias parcerias com privados nestes últimos anos, muitas das quais nos foram apresentadas como “modelos de sucesso”, tendo-se mantido um silêncio absoluto quando as mesmas não tiveram seguimento e não tendo havido qualquer transparência em relação à avaliação feita (se foi feita). Ao mesmo tempo, e do ponto de vista da comunicação e do marketing, tratou-se de parcerias que secundarizaram o museu, colocando-o numa posição de simples local de exposições, e que não reconheceram devidamente o contributo indispensável do museu na realização das exposições.

Diria, por isso, que ao mesmo tempo que se reflecte sobre a necessidade de uma maior autonomia financeira para os museus, é preciso reflectir sobre a necessidade de envolver profissionais destas matérias. Os museus estrangeiros que nos servem de referência contam com fortes equipas nos departamentos de desenvolvimento (termo americano que designa os departamentos de angariação de fundos) e de marketing. E sabem também que estes departamentos não fazem milagres se a sua acção não se articular com a da programação, do serviço educativo, da comunicação. Tudo isso no cumprimento da missão da instituição.

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Resumindo, penso que, uma vez que se trata de uma questão de gestão, temos que reflectir sobre ela com argumentos fundamentados de gestão e a pensar a longo prazo. As afirmações de NVS que “O debate até ao momento tem sido colocado no que o museu procura ser e não no que o museu realmente é”, ou de LR que estamos simplesmente a “sucumbir a agendas mediáticas temporãs” ecoam na minha cabeça. Estaremos a reflectir sobre o caso concreto do MNAA simplesmente porque tem estado mais “presente” publicamente? Apesar de este ter sido um trabalho de relações públicas muito bom (no que diz respeito aos meios de comunicação social e a certos ciclos de pessoas influentes, os chamados opinion makers), podemos, como profissionais, considerar que isto é razão suficiente para considerar atribuir um estatuto especial a um museu nacional, isoladamente, e continuar a evitar (ou a adiar) a reflexão necessária sobre este sector? Não será este um erro de gestão?

To be continued… espero?


*Considerando que devemos este debate ao MNAA, fiquei decepcionada em ver que o Museu partilhou na sua página no Facebook apenas as opiniões que sustentam a sua posição. Pode parecer que não, mas esta é também uma questão de gestão.


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2 comments:

Orlando Sousa said...

Cara Maria
Estou de acordo com as suas reflexões. Ainda uma questão que, na minha opinião, não pode ser desligada da gestão do MNAA, e dos museus da DGPC.É o seguinte: o MNAA foi, desde que me lembro, gerido por um director equiparado a subdirector-geral, caso único no universo dos museus do Estado. Na última reestruturação, criação da DGPC e passagem de alguns museus para as DRCs, passaram o lugar de director do MNAA a director de serviços. E então a DGPC passou a ter um director (equiparado a director-geral) e quatro sub-directores (equiparados a subdirectores-gerais). Teoricamente cada sub da DGPC teria uma área autónoma do património para gerir, sendo uma das áreas os museus. E o que aconteceu? Nomearam o então director do MNAA (António Pimentel) subdirector da DGPC, e nomearam outra pessoa director do MNAA. Parece-me, e sem fazer qualquer juízo de valor de António Pimentel e da sua equipa, que a área dos museus da DGPC foi descurada, em comparação com o MNAA, não obstante ter um subdirector-geral responsável por essa área, e haver um departamento específico.
Os modelos orgânicos são também peças importantes na gestão - quem é quem e quem faz o quê.
Abraço
Orlando

Maria Vlachou said...

Obrigada por este contributo, Orlando. As questões são múltiplas e muitas estão interligadas. Mais uma razão para não tratar assuntos de gestão de forma pontual, como se não estivessem inseridos num universo maior.
Abraço, obrigada.