Saturday 7 May 2016

E então?

"E então?" Uma pergunta / reacção bastante frequente no que diz respeito ao nosso sector, quer verbalmente expressa ou secretamente pensada. É uma pergunta legítima, que raramente estamos disponíveis para discutir.

Rembrandt Harmenszoon van Rijn, "Retrato de Marten Soolmans" e "Retrato de Oopjen Coppit" (imagem retirada do jornal Telerama)

Quando li pela primeira vez a notícia sobre a aquisição conjunta por parte do Louvre e do Rijksmuseum das obras de Rembrandt Retrato de Marten Soolmans e Retrato de Oopjen Coppit, por €160 milhões, não pensei propriamente "E então?", mas sim "Porquê?". Porquê estes dois quadros? Porquê todo esse dinheiro? Quando procurei entender um pouco melhor a importância dessas duas obras (qualquer que fosse a sua importância, dentro do contexto da história da arte ou qualquer outra), fui mais frequentemente confrontada com o adjectivo "raro". Os retratos são "raros", a sua exposição em público foi extremamente "rara”, etc. etc. Isto levantou ainda mais perguntas: Raros como? Porque é que devem ser vistos com mais frequência? Porque é que esses dois museus públicos fizeram um esforço tão grande (financeiro e colaborativo) para os adquirir?

Na conferência anual da NEMO, que teve lugar em Novembro passado em Pilsen, República Checa, o então director do Rijksmuseum Wim Pijbes foi questionado por outros colegas em relação a esta aquisição. A principal preocupação expressa foi que os €80 milhões gastos pelo governo holandês poderiam ter sido investidos numa série de pequenos museus holandeses ameaçados com encerramento devido aos cortes governamentais. Na sua resposta, Pijbes fez uma ligeira tentativa de discutir a "importância" das pinturas. Pelo que me lembro, falou sobre o facto de que dois cidadãos comuns tinham optado por ser representados em tamanho real, como se fossem aristocratas. E isso era, mais uma vez, uma coisa "rara"...

Tenho a certeza que há histórias maravilhosas sobre as duas pinturas de Rembrandt: sobre o casal retratado, a comissão, o artista, a sua arte, bem como sobre a história social da Holanda e as formas como pode estar hoje ligada a questões contemporâneas. Mas isso não parece ser uma questão aquando da aquisição de uma obra de arte por €160 milhões. Os contribuintes devem sentir-se contentes com o facto dos especialistas serem capazes de distinguir o que é raro e importante e tomar decisões em seu nome, sem sentir a necessidade ou obrigação de explicar a sua relevância e importância para o que se poderia chamar de "bem comum".

Em 1994, era estudante de museologia em Londres. Naquela altura, a National Gallery of Scotland e o Victoria and Albert Museum adquiriram em conjunto e mantiveram, assim, em solo britânico As Três Graças de Antonio Canova por £7,6 milhões. O caso tinha atraído a atenção dos media. A batalha legal foi longa e a escultura permaneceu na Grã-Bretanha graças a contributos públicos e privados. Por curiosidade, procurei artigos escritos na época (aqui e aqui) para ver se e como esse esforço tinha sido "justificado". Não surpreendentemente, o que encontrei foi que esta é uma "escultura suprema" e de "excepcional importância" etc., etc...

Caquesseitão (imagem retirada do jornal Público)

Há alguns anos, um caquesseitão que peritos portugueses tinham aconselhado o Estado a adquirir foi vendido por €150.000 em Paris. A leiloeira tinha apresentado a peça como "um objecto excepcional", "absolutamente sumptuoso"; e uma perita portuguesa como uma "peça extraordinária", "de importância no panorama da ourivesaria e iconografia portuguesa/oriental". Na altura em que tinha ficado conhecido que o objecto estaria disponível para venda, lembro-me de um colega dizer a brincar que não acreditava que o Estado iria comprá-lo porque nenhum membro do governo seria capaz de pronunciar "caquesseitão". Bom, sim, mas também... o que é um "caquesseitão"? Quantos português saberiam sequer o significado da palavra, muito menos entenderiam porque é que deveria ser gasto dinheiro público para o adquirir?

Centro de mesa do Palácio Nacional da Ajuda (imagem retirada do website da Câmara Municipal de Lisboa)

Mais recentemente, o Estado Português gastou €48.000 num centro de mesa (hoje no Palácio Nacional da Ajuda). Na declaração oficial sobre a peça lia-se que a sua recuperação "não só constitui uma importante aquisição para o património artístico português, como permite recompor e valorizar um conjunto cujo especial significado tem a maior importância no acervo do PNA, sendo a segunda maior baixela da coleção de ourivesaria com cerca de 300 peças." "Importante", "significado especial", "a segunda maior na colecção". E então, e então, e então? Sentindo-me extremamente curiosa em relação à peça e incomodada com as explicações dadas, fui assistir a uma palestra de Cristina Neiva Correia, nossa colega no Palácio Nacional da Ajuda e descobri o muito mais que poderia e deveria ter sido dito ao público em relação a esta aquisição. Porquê não foi dito? Porque é que a maioria das pessoas que contribuíram para a sua aquisição foi ignorada?

Domingos Sequeira, "A adoração dos Magos" (imagem retirada do website do Museu Nacional de Arte Antiga)

O que me traz ao caso mais famoso de crowdfunding para uma obra de arte em Portugal: "Vamos colocar Sequeira no lugar certo", realizado pelo Museu Nacional de Arte Antiga. A campanha foi original e divertida (as pessoas interessadas em contribuir podiam adquirir alguns dos 10.000.800 pixels da pintura por €0,06 por pixel) e teve um final muito feliz. Certas questões "técnicas" foram levantadas desde o primeiro momento, mas para os propósitos deste argumento, vou limitar-me ao meu papel como membro do público, um não-especialista, mas curioso e interessado em ajudar nesta causa. Apesar de não gostar particularmente da pintura, tentei procurar informações sobre a sua importância; o "porquê" por trás do esforço que justificasse a minha contribuição, apesar de eu não gostar da pintura. Um membro da equipa do museu afirmou: "Trata-se de uma obra de grande qualidade de um dos maiores pintores portugueses do século XIX, para muitas pessoas o maior." Grande, um dos maiores, o maior... Procurei também no site oficial, gerido pelo jornal oficial da campanha, esperando por uma explicação que iria apelar a (e talvez convencer) um membro não-iniciado do público. Aqui está o que eu encontrei: "Pela prodigiosa modelação das figuras e da luz, pela plena integração destas componentes essenciais da pintura, pela invulgar estrutura da composição (uma multidão que liberta o claro espaço onde o episódio se focaliza, teatral visão de uma epifania da presença divina que é, ao mesmo tempo, forma humana e luz beatífica), A Adoração dos Magos é, como já em 1837 afirmava um académico romano, um absoluto capolavoro (obra-prima)."  Perderam-me ali mesmo. Pensei: "E então?"

Receio que estamos a gerir este sector como se fosse um "private joke", algo a ser partilhado e compreendido por poucos afortunados e pelos iniciados. O que diz respeito à nossa herança, aos nossos museus, à nossa cultura não é, no entanto, apenas “da nossa conta”. Uma vez que é gasto neles dinheiro público, uma vez que procuramos cada vez mais o apoio (todos os tipos de apoio) das pessoas, devemos pensar seriamente e cuidadosamente na mensagem que estamos realmente a transmitir; e nas barreiras que estamos a erguer. Estamos a comportar-nos como elites, mas à custa de todos. Não há algo mais que se possa e deva dizer sobre o que fazemos e o porquê o fazemos? Não devemos sentir-nos um pouco mais responsáveis? Não sou ingénua ao ponto de acreditar que a maioria das pessoas iria milagrosamente começar a preocupar-se com estas questões, mas talvez - talvez - se houvesse um interesse genuíno em envolver as pessoas e partilhar com elas um sentimento de pertença para além de um grupo de poucos afortunados, no final, e a longo prazo, a preocupação e o interesse das pessoas em relação ao nosso património, e o sector cultural em geral, poderia também mudar?


Nota em 30.7.2016: Interessantes respostas a propósito da aquisição, através de uma campanha de crowdfunding, do quadro de Elizabeth I "Armada".


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