Monday 2 September 2013

O ano novo


Estou de regresso de Washington, no avião de Paris para Lisboa. Estou no lugar do meio, por isso, peço ao homem que está no lugar de corredor para me deixar passar. Não olho bem para ele; um homem moreno, poderia ser português.

Começo a ler o meu livro. Pouco tempo depois, sinto que o homem ao meu lado está um pouco nervoso. Olho para as suas mãos: tem um boné, o seu telemóvel e algumas páginas enroladas com um texto em inglês. Tento olhar melhor para ele, discretamente. Não é português, é de origem árabe. Olho novamente para as suas mãos. O seu telemóvel está ligado e está constantemente a verificá-lo. O texto nas páginas enroladas é um texto científico, mas não consigo perceber de que área exactamente.

As assistentes de bordo passam e oferecem bebidas. Não aceita. “Ramadão”, penso para mim. Continua a olhar para o seu telemóvel e faz-me sentir nervosa também. Olho novamente para ele, está de olhos fechados e os seus lábios estão a mexer. Está a rezar? Estou ainda mais nervosa. Tento dizer a mim própria que tem ar de um homem perfeitamente normal, mas há uma outra voz interior que me diz “Não têm todos ar de um homem normal?”.

Pouso o meu livro na mesa, é de um autor Árabe (estarei a tentar mandar um recado?). Muitos pensamentos passam pela minha cabeça. Um deles é levantar-me e ir avisar o pessoal de cabine que tenho um Árabe nervoso sentado ao meu lado com o seu telemóvel ligado… Obrigo-me a mim própria a ficar onde estou, sentindo-me ridícula. E então ele diz:

-          O que está a ler?
-          É um autor marroquino.
-          É o que me pareceu.
-          É também marroquino?
-          Sim, sou.

Pede para dar uma vista de olhos. Pega no livro e lê a sinopse. Depois começamos a falar sobre política. Religião também. Pergunta-me sobre a Grécia, falamos muito sobre o Egipto e depois também sobre Marrocos. Está a caminho de Portugal para participar numa conferência sobre matemática aplicada. Estou a gostar muito da nossa conversa, tem uma voz calma e parece um homem meigo, mas não consigo deixar de me sentir nervosa. Sempre que haja um momento de silêncio, olha para o seu telemóvel. “Não têm todos ar de um homem normal?”, insiste a voz interior.

Assim que aterramos em Lisboa, ele diz-me: “Sabe que as probabilidades de um avião se despenhar são muito menores do que de dois comboios colidirem?”. Não está nervoso, não estou nervosa. Sinto-me aliviada. E sinto vergonha.

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Há duas entradas para a exposição do Museum of Tolerance em Los Angeles, uma com a indicação “Preconceituoso”, a outra “Não preconceituoso”. Aqueles que tentam entrar pela segunda porta encontram-na fechada, não conseguem abri-la. O incidente no avião continuou a assombrar os meus pensamentos. Sentia-me realmente envergonhada. Se o homem ao meu lado não parecesse Árabe, teria reagido de outra forma ao seu nervosismo.

Organizações e pessoas que trabalham na área do racismo e da discriminação lembram-nos constantemente que não nascemos racistas, tornamo-nos racistas. E, depois de nos tornarmos, parece ser preciso lutar mesmo muito, conscientemente e com determinação, para evitar discriminar o Outro. Depois de conversar com algumas pessoas sobre o incidente no avião e de ouvir as suas opiniões sobre o que devia ter feito, apercebi-me que esta luta é mesmo difícil. Porque, para lutarmos, é necessário primeiro estarmos conscientes dos nossos actos discriminatórios, estarmos conscientes das nossas próprias atitudes. Muito frequentemente não estamos. Nunca pensamos em nós próprios como racistas e uma série de desculpas servem-nos perfeitamente para justificarmos os nossos pensamentos e acções: a necessidade de sentirmos segurança, a necessidade de protegermos as pessoas que amamos e as nossas comunidades, a necessidade de preservarmos a nossa cultura e tradições, a necessidade de defendermos o nosso território, a necessidade de garantirmos a nossa sobrevivência… Por isso, se necessário e ‘just in case’, o Outro poderá ter que pagar o preço. E “não há mal nisto, é compreensível, somos boas pessoas, preocupadas com os nossos”…

Esse ‘just in case’ tem servido de desculpa para muitas pessoas nas suas decisões do dia-a-dia, assim como para muitas e importantes decisões políticas. A América pós-9/11 vem-me inevitavelmente à cabeça. Mas mesmo aí – como me apercebi lendo o livro de Leila Ahmed A Quiet Revolution – The Veil´s Resurgence, from the Middle East to America -, no meio da destruição, da dor, do medo, da raiva, da violência, houve pessoas de todas as origens e religiões que foram capazes de olhar bem para elas próprias e de ser solidárias para com outras, determinadas em preservar as suas comunidades multiculturais, manter e proteger as suas relações com amigos e vizinhos, continuar a ser e a sentir-se humanas. A linha entre o civilizado e o bárbaro é tão ténue; requer um esforço tão grande para se ser o primeiro e não o segundo.

Setembro assinala um ‘ano novo’ para mim mais que Janeiro; vem do tempo da escola. É o momento em que olho para a frente e penso “E agora?” ou “A seguir?”. Neste preciso momento, tendo o ‘ano novo’ pela frente, a minha cabeça está cheia de perguntas. Penso novamente no meu tempo no Kennedy Center, onde Egípcios falam com Israelitas; Paquistaneses e Indianos trocam piadas sobre os seus países; um Sérvio, uma Croata e um Bósnio tiram fotos juntos; uma Grega e uma Turca partilham uma refeição. Será este um ambiente ‘seguro’, ‘civilizado’? Teria sido diferente se o contexto fosse diferente? Haverá espaços onde as pessoas são civilizadas e outros espaços onde essas mesmas pessoas se tornam bárbaros? Terá mesmo a cultura um papel em manter-nos civilizados ou os seus ‘efeitos’ são facilmente neutralizados por outras forças e factores? Poderá ajudar a criar um espaço comum, onde as pessoas possam coexistir e manter boas relações, não simplesmente tolerando uns os outros, mas ficando a conhecer-se melhor; dispostas a conversar, a entender, a aceitar? Não foi o livro de Fouad Laroui que ajudou a iniciar a conversa naquele avião, que ajudou a controlar o medo? As minhas resoluções para o ‘ano novo’ encontram-se algures entre todas estas questões.

Ler também:

Can Culture make it?

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