Monday 4 February 2013

Discutindo valores (e vales), do Brasil ao Líbano

Imagem retirada de www.cultura.gov.br

Em Junho de 2011 escrevia sobre uma proposta para um decreto-lei do governo brasileiro que visava a criação do Vale Cultura, uma medida através da qual seria concedido um subsídio mensal de R$50 (aproximadamente €22) a trabalhadores que ganham até cinco salários mínimos, a fim de permitir o acesso a produtos e serviços de artes visuais, artes performativas, audiovisual, literatura, música e património cultural.

Tinha sido muito crítica na altura. Não por não acreditar que milhares de pessoas iriam beneficiar, mas, sobretudo, pelos pressupostos anunciados para a criação do vale. O governo, na sua proposta, apresentava a medida como uma forma de “possibilitar o acesso e a fruição dos produtos e serviços culturais; estimular a visitação a estabelecimentos que proporcionem a integração entre os temas de ciência, educação e cultura; e incentivar o acesso a eventos e espetáculos culturais e artísticos”. Por seu lado, Roberto Baungartner, no seu artigo Democratização do Acesso à Cultura , mostrava-se convicto que esta iniciativa, para além de beneficiar propriamente a cultura, criaria mais emprego e receita, reduziria a violência, incrementaria, pelo lado da procura, as cadeias produtivas envolvidas e tornaria as empresas brasileiras mais competitivas no cenário internacional.

Hoje, o Vale Cultura é uma realidade. Dos EUA (aqui e aqui) ao Líbano (aqui), foi recebido como grande fonte de inspiração. E ainda bem, porque não se conhece (eu não conheço) nenhuma outra iniciativa do género e, por isso, é importante ser seguida e avaliada face aos objectivos que se propõe a alcançar. No entanto, as reportagens e opiniões que li agora não vão além das questões de logística: quem paga o quê, como, etc. E assim, as minhas dúvidas e críticas, feitas em 2011, permanecem.

O que significará para um brasileiro (ou português ou grego ou libanês…) receber um vale para gastar em ‘cultura’ quando onde vive, ou nas proximidades, não há cinema, não há teatro, não há museu, não há livraria? O que será suposto fazer com ele? E ao contrário, qual terá sido o estudo que revelou que, nos locais onde estes equipamentos existem, a maioria das pessoas que não os frequenta não o tem feito por não ter o dinheiro necessário?

Não quero com isto dizer que não existem pessoas que têm o gosto e a pré-disposição de participar em actividades culturais e que não podem ter acesso às mesmas devido a limitações financeiras. Sobretudo agora. No entanto, considero que as barreiras mentais e psicológicas existentes entre as pessoas e as instituições culturais ou certas formas de arte, em qualquer lugar do mundo, são muito maiores e determinantes do que a barreira financeira, sobretudo no caso de todos aqueles que não têm o hábito de participar. Quem entre nós está disposto a investir – não só dinheiro, tempo sequer – em algo que à partida não parece interessante ou relevante ou compreensível? E algo que parece distante ou em algo que não existe?

As entrevistas feitas a alguns trabalhadores brasileiros - num programa onde também é entrevistado o Secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, Sérgio Mamberti -, merecem ser ouvidas e analisadas no seu pormenor: uma senhora afirma nunca ter tido sequer a coragem de se aproximar do Teatro Municipal e de perguntar quanto é que era, por considerar que, sendo tão bonito e grande, deveria ser muito caro também; um senhor diz não ter o hábito de frequentar, mas que gostaria de ter um incentivo para o fazer; outro senhor ainda afirma o seguinte: “Como a gente é um país de muita miscigenação, a gente tem muito a oferecer ao mundo. Eu acho que isso é pouco aproveitado, porque as pessoas não têm acesso nem para curtir a cultura nem à pessoa que faz a cultura. Então, acho que este incentivo, além de incentivar as pessoas a irem ao teatro, ao cinema, eu acho que vai incentivar as pessoas a estudar teatro, a estudar cinema. Vão passar a conhecer coisas que não conheciam e muitas pessoas vão-se interessar por estes temas e vão passar a fazer parte do outro lado, não só do espectador” [sic].


As entrevistas dos trabalhadores são reveladoras, na minha opinião, dos preconceitos, dos mal-entendidos, do desconhecimento mútuo entre as partes, da falta de hábito, ou seja, da falta de acesso relacionada, em primeiro lugar, com barreiras intelectuais e psicológicas. Penso, por isso, que quem estuda, desenvolve e implementa políticas culturais devia olhar primeiro para essas barreiras, ao mesmo tempo que procura facilitar o acesso do ponto de vista financeiro. Começar ao contrário, insistir em considerar o dinheiro como principal factor de inibição nesta relação, é insistir em esconder a cabeça na areia ou ir pelo caminho mais fácil.

Entretanto, ao mesmo tempo que a notícia do Vale Cultura dá a volta ao mundo, uma outra notícia, também vinda do Brasil, tem tido uma circulação muito mais discreta, pelo menos para quem vive longe desse país. De acordo com essa notícia (ler aqui), na localidade de Santo André, no Estado de São Paulo, um movimento cultural - que reúne Pontos de Cultura, produtores culturais, estudantes, professores, escritores, movimentos sociais e moradores – exigiu e conseguiu uma audiência com o Secretário de Cultura do estado. Quiseram saber quais os planos da secretaria da cultura e exigiram a participação pública na gestão. Não facilitaram as coisas para o Secretário, não aceitaram generalidades e promessas como resposta, insistiram nas perguntas e críticas, irritaram-se, mostraram-se impacientes, não se comoveram com a demonstração de humildade por parte do Secretário - que afirmou muito ter que aprender com eles - e reclamaram sobre sua falta de preparação para ocupar o lugar. Como é que isto aconteceu em Santo André? O que é preciso para acontecer? Como é que se cria este sentimento de pertença, de sentido do que constitui um direito e uma obrigação cívica no que diz respeito aos assuntos culturais? Esta, sim, é uma grande notícia, talvez maior do que a do Vale Cultura, e por isso, merecedora de maior atenção e acompanhamento. Santo André deveria ser um caso de estudo.



1 comment:

André Fonseca said...

Sobre o Vale-Cultura, o que acabou tornando-se o principal ponto de discussão aqui no Brasil é o que as pessoas beneficiárias do vale irão consumir. E com isso, veio toda a arrogância daqueles que produzem uma cultura que entendem como sendo de maior importância ou qualidade, ou daqueles que acham que as parcelas mais pobres da população não teriam um gosto apurado o suficiente para consumir o que "deveria" ser consumido (discussão essa, aliás, que mostra que a polaridade baixa cultura x alta cultura ainda está longe de se tornar um assunto gasto). Mas quase não vi alguém questionar o foco no dinheiro (no caso, o vale-cultura) como ferramenta para a chamada "democratização do acesso". Continuamos a atacar o mal, e não a raiz do problema. Mas é claro que uma medida como o Vale-Cultura gera mais mídia e impacto eleitoral.