Monday 14 January 2013

Blogger convidado: "O museu político", por David Fleming (Reino Unido)


David Fleming é alguém que admiro e respeito muito e que tem influenciado profundamente o meu pensamento sobre o papel dos museus. Há uns anos, Josie Appleton criticou a afirmação de David que tinha entrado no mundo dos museus porque esta era a sua forma de tentar mudar o mundo dizendo: “Um objectivo admirável, com certeza, mas talvez Fleming devesse ter-se tornado um político ou assistente social e não um director de museu.” [in Watson, E. (ed), Museums and their Communities, p116]. Eu pessoalmente estou contente que David tenha entrado para os museus e que se tenha tornado um director de museu. E é com muito prazer que publicamos neste blog uma versão abreviada da sua comunicação O Museu Político, que foi feita na conferência do INTERCOM em Sydney, em Novembro passado. No fim deste texto existe um link onde o seu discurso pode ser lido na íntegra. mv

Imagem retirada do website de National Museums Liverpool.

1.   Introdução – o mito da neutralidade

É tradição dizer que os museus são, ou deveriam ser, apolíticos, e isto significa que os museus não se deveriam envolver nas relações de poder que caracterizam a sociedade. Não nos compete embrulharmo-nos no mundo das pessoas reais, dos eventos reais, da controvérsia e das opiniões. Aquilo que devíamos fazer é usar os nossos conhecimentos e a nossa perícia para criar e tomar conta das nossas colecções e para as apresentar de uma forma neutra para benefício público, flutuando numa nuvem de virtude académica, que paira muito acima das realidades mundanas da vida humana. Na verdade, continuar a fazer aquilo que muitos museus têm tentado fazer a maior parte do tempo, desde que foram criados.

Isto é, claro, o cúmulo da hipocrisia e é, verdadeiramente, uma afirmação de um vazio completo defender que os museus têm alguma vez sido ‘neutros’ relativamente a qualquer coisa que fosse. Todas as tarefas básicas que assumimos – investigar, coleccionar, apresentar, interpretar – estão sobrecarregadas de significado e preconceitos e sempre estiveram; estas tarefas são os métodos que o museu usa para servir ao público aquilo que as pessoas que dirigem o museu querem que o público veja. Os museus são construções sociais e a política é um pilar da actividade social – não se pode ter uma coisa sem a outra. Independentemente do tipo de museu, do que contém, têm sido sempre tomadas decisões por alguém sobre o que investigar, o que preservar, o que coleccionar, o que apresentar, como interpretar; e têm sido tomadas decisões sobre o que não fazer, o que não investigar, o que não preservar, o que não coleccionar, o que não apresentar, o que não interpretar.

Não tenho a certeza sobre a razão porque algumas pessoas que trabalham em museus, e outras, valorizam tanto a imagem de alguém numa busca desinteressada do conhecimento, como se, procedendo assim, evitássemos o risco de nos tornarmos políticos. A questão não é “é certo ou errado os museus serem políticos?” mas “todos os museus são políticos, porque é que alguns pretendem que não o são?”.


2. O museu político em acção

a) O modelo antigo

Depois da conquista da Grécia no século II antes de Cristo, os Romanos usaram a exposição triunfal de objectos para demonstrarem a superioridade de cultura romana sobre a grega. Esta técnica teve continuidade ao longo dos tempos, pela igreja cristã, por Carlos Magno, pela República de Veneza, por Napoleão, pelos Nazis, e por muitos outros – em todas estas instâncias, qualquer apreciação estética dos objectos expostos estava provavelmente subserviente à mensagem do poder político. Alguns dos grandes museus da Europa Ocidental são exemplos particularmente bons do modelo antigo do museu político, com as suas exposições de saque imperial e a sua presunção casual de superioridade europeia sobre outros povos. A natureza política deste género de museus tem sido revelada nas justificações para a existência de museus “universais”, um conceito que voltou a ganhar proeminência em 2003 com a Declaração sobre a Importância e o Valor dos Museus Universais  (Declaration on the Importance and Value of Universal Museums) pelos directores de um grupo auto-seleccionado de grandes museus europeus e norte-americanos. O modelo antigo do museu político é melhor caracterizado pela sua discrição. É político, mas finge não o ser – finge ser meramente ortodoxo e verdadeiro. É um museu que ia prosperar na Oceania de George Orwell.

b) O novo modelo

Imagem retirada do website de Tuol Sleng Genocide Museum.
Hoje em dia, o novo modelo de museu político manifesta-se e está a fazer campanha, em particular nas áreas dos direitos humanos e da identidade nacional: The National Museum of Australia (Canberra), The Museum of New Zealand Te Papa Tongawera (Wellington, New Zealand), District Six Museum (Cape Town, South Africa) , Tuol Sleng Genocide Museum (Phnom Penh, Cambodia), Museum of Genocide Victims (Vilnius, Lithuania), Museumof the Occupation of Latvi (Riga, Latvia), The Museum of the Romanian Peasant (Bucharest, Romania), The Vietnam War Remnants Museum (Ho Chi Minh City, Vietnam), DDR Museum (Berlin, Germany), entre outros. Há muitos mais museus deste tipo que procuram activamente emendar uma situação onde as políticas do poder deixaram algumas pessoas  na melhor das hipóteses desfavorecidas; na pior, oprimidas e vitimizadas.

Há duas semanas, recebi um email do director do Memorial Resistance Museum em Santo Domingo: “Acabo de criar uma nova petição e espero que possa assinar. Chama-se: Estamos a lutar pelo direito à verdade e à justiça pelas vítimas da ditadura de Trujillo.”

Fui ao website e encontrei o seguinte: “Pedimos ao Procurador-Geral da República Dominicana, Sr. Francisco Dominguez Brito, para fazer cumprir as leis e os tratados internacionais sobre os direitos humanos, defender os direitos dos jovens e das crianças da república Dominicana à verdade, defender o direito à justiça para mais de 50.000 vítimas da ditadura de Trujillo, para os sobreviventes e os familiares das vítimas. Exigimos o cumprimento da decisão dos tribunais dominicanos, que nos protegem das reivindicações do regime e da figura do ditador, e a criação de uma Comissão de Verdade.”

Este é o museu político a grande potência.

Em conclusão, existe uma separação entre os museus activos, em campanha, que vimos aqui e aqueles que fazem o seu trabalho político de forma mais discreta, mas esta separação é superficial. Diria que a maioria dos museus são políticos e é ingénuo ou desonesto fingir o contrário. Não deveríamos lamentar este facto, como se houvesse um estado melhor, neutro, ao qual poderíamos aspirar – está na natureza humana ser político, e ainda bem.


O texto completo da comunicação de David Fleming, em inglês, pode ser lido aqui. O Museum of Liverpool, um dos museus sob a direcção de David, recebeu no mês passado o Prémio do Conselho da Europa para 2013, um prémio atribuído pela Comissão de Cultura, Ciência, Educação e Media da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (PACE). PACE disse que “O Museum of Liverpool proporciona um reconhecimento exemplar dos direitos humanos na prática museal." (ler aqui)

Mais leituras
Lugares de encontro, por Maria Vlachou
Silenciosos e apolíticos?, por Maria Vlachou

Veja ainda:


David Fleming tornou-se director dos National Museum Liverpool em 2001. Dirigiu um processo de gestão de mudança radical que resultou num aumento no número de visitantes de 700.000 por ano a 3,5 milhões, aumentando ao mesmo tempo, de forma marcante, a sua diversidade. Tem sido consultor de vários governos, museus e autarquias, a nível nacional e internacional, sobre estratégia para museus nacionais, gestão de projectos, design de exposições e governança de museus. Tem muitas publicações sobre museus e tem dado inúmeras palestras sobre gestão de museus e liderança, inclusão social, museus de história de cidades e museus de direitos humanos, em mais de 30 países. É Presidente Fundador da Federation of International Human Rights Museums (FIHRM), Vice-Presidente do European Museum Forum e Presidente da Comissão de Finanças e Recursos do ICOM. Foi Presidente da Museums Association do Reino Unido e tem participado em várias comissões governamentais.

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