Monday 29 October 2012

Qual - ou quem - é a barreira?

Castelo de Mértola (Foto: Fátima Alves)

Uma família chega ao sopé do castelo de Mértola. Tem quatro crianças, uma delas com mobilidade bastante condicionada; um rapazinho nos seus 10-11 anos. Um dos irmãos pega no andarilho e transporta-o a correr até ao topo dos degraus que levam à entrada do castelo. A mãe apoia o seu filho no braço e começam os dois a subir lentamente os degraus. A meio, sugere-lhe fazer uma pausa. O rapaz prefere continuar. Faz um esforço enorme para colocar o pé, que treme do cansaço, no degrau seguinte. Não quero ultrapassá-los; sigo-os, quero acompanhá-los no seu ritmo. Chegando à entrada do Castelo, o rapaz finalmente descansa. A mãe avança um pouco para avaliar a dificuldade do resto do caminho.

Assisti a esta ‘subida ao castelo’ no fim de uma semana em que participei em dois encontros sobre museus e acessibilidade: o seminário anual do GAM – Grupo para a Acessibilidade nos Museus, no Seixal, intitulado Programar para a Diversidade, e o 1ºEncontro Transfronteiriço de Profissionais de Museus, em Alcoutim. Dias antes da realização do seminário do GAM, encontrei-me com uma colega polaca que me colocou a seguinte questão: “O que esperas destes encontros”?

Fala-se bastante de acessibilidade entre os profissionais de museus, cada vez mais. E o conceito de ‘acessibilidade’ está constantemente a crescer e a alargar-se. Não se trata apenas da preocupação em e da obrigação de dar resposta às necessidades das pessoas com deficiência (física e cognitiva), mas de um amplo leque de necessidades intelectuais, sociais e culturais dos cidadãos. Trata-se, ainda, de gerir e de saber aproveitar uma cada vez maior vontade e necessidade das pessoas em estarem envolvidas no processo de tomada de decisões, de forma a que se revejam nos produtos finais propostos pelos museus ao público (a minha comunicação sobre este tema em Alcoutim encontra-se disponível na coluna da direita).

Escrevo este texto quase uma semana depois e apercebo-me que as coisas que mais me marcaram nesses dois encontros e que mais me fizeram reflectir estão todas ligadas a questões de mentalidade, da nossa mentalidade, dos profissionais de museus.

Fernando António Baptista Pereira, professor na Faculdade de Belas-Artes e comissário de várias exposições apresentadas em Portugal e no estrangeiro, fez a conferência de abertura no seminário do GAM. Questionado sobre a sua melhor e a sua pior exposição, não hesitou em admitir que as suas piores exposições, apesar de lindíssimas, foram aquelas que fez para os seus pares, aquelas que não foram feitas a pensar no público em geral. Dá esperança ouvir isto da parte de alguém que comissariou e voltará a comissariar exposições que atraem um grande número de pessoas. E como Fernando António Baptista Pereira, haverá, com certeza, mais profissionais desta área (comissários, directores de museu, curadores) que, mesmo que não o digam, tenham consciência que assim é. Por isso, uma pessoa fica a pensar quando é que podemos esperar ver nos museus portugueses, e em particular nos museus nacionais (públicos) portugueses, exposições que possam ser entendidas pelos não-especialistas que as visitam e que são a maioria dos visitantes. Exposições que possam ser fonte de novos conhecimentos, de verdadeiro prazer e de descoberta, em vez de um meio de comunicação e de diálogo entre poucos entendidos e uma fonte de frustração para os restantes?

Em Alcoutim, assistimos à apresentação de Maribel Rodriguez Achutégui “Redacção de textos expositivos para todos os públicos”, que veio lembrar-nos que é possível, sim, escrever para todos, sem infantilizar, sem banalizar o discurso, sem pôr em causa a precisão científica da informação apresentada. A alguns de nós, a sua apresentação trouxe memórias do excelente seminário Sabe escrever para todos? A acessibilidade da comunicação escrita nos museus, o primeiro seminário anual do GAM, em 2006, que contou com duas presenças marcantes: a de Helen Coxall (consultora em museum language – sim, a especialidade existe, assim como existe extensa bibliografia sobre a matéria, que em parte se encontra no site do GAM) e a de Julia Cassim (designer ligada ao Helen Hamlyn Centre for Inclusive Design). Mais tarde nesse ano, Helen Coxall fez um memorável workshop, Am I Communicating? Writing effective museum texts, organizado pelo GAM na Fundação Calouste Gulbenkian. Qual terá sido o impacto dessas iniciativas em Portugal? Quem trabalha em serviços educativos queixa-se frequentemente da dificuldade em ‘convencer’ comissários e directores de museus da necessidade dos textos (para as exposições, mas também para todos os suportes de comunicação do museu) serem escritos  numa linguagem mais acessível (se bem que as excepções existem: lembro-me, por exemplo, dos textos da exposição sobre o automóvel no Museu dos Transportes e Comunicações no Porto ou dos do Museu da Comunidade Concelhia da Batalha, para referir apenas dois). Uma pessoa fica a pensar, porque é que é que tão difícil convencê-los? Será que nunca ouviram as queixas dos seus visitantes, destinatários últimos, diz-se, desta oferta? Ou será que não se importam?

Uma outra apresentação brilhante e muito ‘educativa’ foi a do designer gráfico Filipe Trigo, que nos trouxe uma série de exemplos daqueles que já todos temos visto nas nossas visitas a museus e exposições: bíblias na parede (ou book on the wall), letra pequena, legendas escondidas ou colocadas muito baixo ou muito alto, contrastes que tornam a leitura impossível, anarquia na apresentação dos conteúdos (que ficam onde der mais jeito, sem uma lógica por trás). Esta apresentação merecia ser vista por comissários e directores de museus, mas também por designers gráficos, uma vez que não existe consenso sobre quem é que impõe soluções a quem. Existe é uma desconfiança mútua e talvez alguma indefinição sobre o papel de cada um e, entre os dois, sobre o papel dos museólogos e/ou profissionais dos serviços educativos e/ou profissionais da comunicação. Não faria sentido que cada um fosse ouvido sobre a sua área de especialidade, com o objectivo final de servir melhor as necessidades dos visitantes?

Hoje poderia responder melhor à pergunta da colega polaca, “O que esperas destes encontros?”. Espero que da próxima vez que se organizar um encontro para se falar de acessibilidade (qualquer tipo de acessibilidade) haja mais directores de museu, comissários de exposições, arquitectos e designers na audiência. Esta não é uma questão que diga apenas respeito aos serviços educativos. Diria até que diz cada vez mais respeito àqueles que tomam as decisões finais. Para que serve sensibilizar e preparar tecnicamente nos cursos de museologia futuros profissionais, que só daqui a 20 ou 30 anos estarão numa posição de tomar decisões, se nos próximos 20 ou 30 anos continuarem a encontrar a maior barreira de todas dentro dos próprios museus? Se estes encontros continuarem a ser uma oportunidade para se encontrarem os já sensibilizados e para concordarem entre eles, o seu impacto, então, continuará a ser mínimo ou quase inexistente. Há necessidade de assumir compromissos e não ficar pelo discurso politicamente correcto. Há também a obrigação de cumprir a lei. E tem que ser agora, não daqui a 20-30 anos. Não custa nada (e não custa mais…).


Vídeos
Joaquina Bobes, Textos expositivos y visitantes: ¿hablamos el mismo idioma? 
Julia Cassim, Inclusive design

2 comments:

Nuno Beja said...

Olá Maria
Nem de propósito este post. Estive também em Mértola na quarta feira passada e também fui ao castelo e às ruinas musealizadas e, graças a vocês e ao vosso trabalho no gam, experimentei percursos, li textos e coloquei-me no lugar de todos aqueles que, de facto, estão a ser excluidos da fruição cultural a que têm direito. Neste caso a desgraça é quase completa. A subida ao castelo só para atletas bem preparados; os textos são de arqueólogos para arqueólogos, etc., etc.
Sobre tudo isto fiz um pequeno comentário - que resume o que penso sobre esta matéria - no fb, na ligação sobre o vídeo da Joaquina Bobes.
Penso que não fui politicamente correcto...
Obrigado mais uma vez Maria por esta vossa luta e contem comigo para lutar.

Maria Vlachou said...

Recebi hoje um comentário muito interessante, e também justo, relativamente ao que foi dito no seminário do GAM. Peço a quem o enviou para o voltar a submeter identificando-se. Preferia que a discussão aqui não fosse na base do anonimato. Obrigada.