Monday 23 July 2012

Conforto e perturbação - Parte II


Tive curiosidade em saber de onde veio a citação do meu último post: “As artes devem confortar o perturbado e perturbar quem se sente confortável”. Procurei no Google e o nome que apareceu com maior frequência (apesar de haver mais dois concorrentes) era o de Cesar A.Cruz, poeta mexicano, educador e activista de direitos humanos. Suponho que qualquer que seja o sector que deseje honestamente ter um impacto na vida das pessoas – seja ele o social, o da educação, o da política, o dos media, o das artes/cultura – procure o mesmo: confortar os perturbados e perturbar quem se sente confortável.

É exactamente isto que Washington tem sido para mim nas últimas semanas. Estou sempre algures entre os dois, às vezes mais inclinada para o conforto, outras para a perturbação. Pelas melhores razões, suponho.

Poderia falar de muitas coisas, mas vou apenas falar de duas: duas pessoas, que tivemos o privilégio de conhecer. Aqui estão as suas histórias:

Yvette Campbell, ex-bailarina da companhia Alvin Ailey, é Presidente e CEO de Harlem School of the Arts (HSA). Em Janeiro 2011, aceitou o convite para liderar a HSA, numa altura em que a escola tinha uma dívida enorme e estava prestes a fechar. Para além da existência da dívida, que era do conhecimento de todos, Yvette diagnosticou ainda os seguintes problemas: a escola era conhecida sobretudo entre pessoas mais velhas, que se lembravam dela do seu tempo de auge nos anos 60; o edifício era bastante proibitivo, visualmente inacessível, escondendo os ‘tesouros’ que guardava (Yvette, ela própria uma bailarina, nunca antes tinha lá entrado); havia uma necessidade de re-contar a história, tanto à comunidade mais próxima como àquela mais alargada, e de construir uma ‘família’ que pudesse contribuir (também e sobretudo financeiramente) para a sustentabilidade da escola. Foi à volta destes problemas e necessidades que Yvette Campbell construiu a sua estratégia, concentrando-se fortemente no marketing institucional e estando aberta a qualquer oportunidade que permitisse à escola dar que falar, fazendo-a presente na mente e nos corações das pessoas.

Nos meses a seguir à chegada de Yvette Campbell, Harlem School of the Arts manteve os media regularmente informados sobre a sua actividade e a determinação de manter a escola aberta. Em Abril 2011, apenas três meses depois da tomada de posse de Yvette, surgiu a oportunidade para um grande artigo sobre a nova directora  na revista Essence, o que ajudou a reforçar significativamente a visibilidade da escola. (Foto: Kwaku Alston)
Entre as muitas coisas que Yvette partilhou connosco, gostaria de destacar duas. Primeiro, a sua relação com a equipa da HSA. Yvette não trouxe com ela uma ‘equipa-maravilha’ que iria fazer acontecer um ‘milagre’. Quando assumiu o seu posto, começou por querer saber o que é que cada membro da equipa fazia. A seguir, partilhou com eles a sua visão e objectivos, explicou qual era a meta a atingir e disse-lhes o que é que esperava de cada um deles. As pessoas que não conseguiram corresponder às expectativas, foram convidadas a sair. Tal como Yvette pensa que ela própria deverá ser convidada a sair se não atingir os objectivos. Pretende ter uma equipa concentrada, motivada e empenhada e quer ter à sua volta pessoas mais inteligentes do que ela nas suas respectivas áreas. O segundo ponto que gostaria de destacar é a sua relação com a ‘família’. Yvette assumiu desde o primeiro momento a obrigação de ser accountable* junto de todas as partes interessadas e daquelas pessoas que poderiam ter a capacidade e o interesse em ajudar a escola a cumprir a sua missão (especialmente ao nível financeiro). Por isso, tem estado a partilhar com elas toda a informação sobre a evolução do projecto, enviando pessoalmente relatórios detalhados a algumas dezenas de pessoas (inicialmente todos os dias, depois semanalmente e agora mensalmente). Chama-os “os relatórios da CEO”. Esta é a sua forma de os manter todos informados sobre os progressos que a escola (e ela própria como CEO) está a fazer no sentido de atingir os objectivos estabelecidos e também de os manter todos envolvidos neste esforço colectivo, lembrando-lhes da importância do seu apoio. Quando ouvimos e olhamos para a Yvette Campbell, temos aquele sentimento distinto de que estamos perante um líder nato. A sua energia, entusiasmo, determinação, o seu pensamento estruturado, fazem-nos sentir que ela é a pessoa certa no lugar certo. Graças a ela e à equipa da HSA, ano e meio depois da sua entrada, a escola voltou a estar no bom caminho e a saldar a dívida, tornando-se numa instituição cultural financeiramente saudável.

O segundo encontro marcante foi com Taro Alexander
. Taro, actor e professor, gagueja desde os três anos de idade. Passou anos e anos a tentar ser apenas mais um rapaz ‘fixe’ e a não ser visto como uma aberração; a procurar esconder, com vários truques, que gaguejava (a guaguez que não tinha quando estava no palco). Conhece pessoalmente a luta que está a ser travada por muitas crianças e jovens, que fazem parte de uma comunidade de 60 milhões de pessoas em todo o mundo. Assim, em 2001, fundou Our Time, uma organização que ajuda crianças a melhorar a sua auto-confiança e capacidades de comunicação através do teatro. Ao mesmo tempo, assiste pais e professores, inclusivamente terapeutas da fala em escolas, a maioria dos quais tem muito pouca preparação para lidar com a gaguez. Esta é uma pequena organização de 5 pessoas, que trabalha com aproximadamente 150 crianças, ou seja, dificilmente seria do interesse de potenciais patrocinadores e doadores, que procuram os grandes projectos que proporcionam visibilidade e reconhecimento. Assim, o financiamento tem sido uma preocupação desde o primeiro momento e uma das formas de lidar com ela tem sido a organização de um evento anual, uma gala, para a angariação de fundos. No início, as coisas não foram fáceis e a organização chegou a perder dinheiro. Mas Taro Alexander e a sua equipa mantiveram-se concentrados, continuaram a fazer o seu trabalho e continuaram a organizar um evento de qualidade e entusiasmante, conseguindo assim melhorar os resultados da angariação de fundos, se bem que modestamente. O seu melhor ano foi 2010, quando Carly Simon, uma cantora famosa – que também gagueja -, aceitou ser homenageada no evento desse ano, atraindo um grande número de pessoas e ajudando a angariar mais dinheiro.

O ano de 2010 foi o ponto de viragem por mais uma razão. Foi pedido a Taro Alexander para dar a sua opinião sobre o guião de uma nova peça de Broadway sobre o Rei George, o rei que gaguejava. Mais tarde, soube-se que o guião, afinal, se tornaria num filme de Hollywood, com Colin Firth, Helena Bonham Carter e Geoffrey Rush. Taro foi convidado para a estreia. Ficou profundamente impressionado com o filme e com a interpretação de Colin Firth. Assim que o filme acabou, e ultrapassando a sua timidez, foi dar os parabéns ao guionista, David Seidler (que também gagueja), e perguntou se aceitaria ser o homenageado da gala Our Time em 2011. Ele aceitou, no entanto, o facto de Seidler não ser muito conhecido preocupava algumas das pessoas envolvidas na organização da gala quanto ao impacto que o seu nome poderia ter no esforço para a angariação de fundos. Mas vejam o que aconteceu nos meses que se seguiram: as pessoas falavam cada vez mais sobre o filme;
The King´s Speech ganhou variadíssimos prémios, incluindo o Óscar de Melhor Guião Original para David Seidler; Colin Firth não ia conseguir estar presente na gala, mas aceitou ser o Presidente da Comissão de Honra; Carly Simon também aceitou o convite para cantar na cerimónia daquela noite.



A gala de angariação de fundos foi um grande sucesso, mas também um prémio para uma década de trabalho consistente e empenhado. Taro Alexander e a sua pequena equipa estão agora a tentar construir prudentemente sobre este sucesso, considerando a missão e os recursos da organização. Uma coisa que estão certamente a fazer cada vez melhor é registar e partilhar o seu impacto, uma das formas mais importantes na comunicação com a sua ‘família’, com doadores existentes e potenciais.


Porque é que estes dois encontros foram marcantes? O que é que ficou connosco? Ficou o conforto: pelas coisas que podem ser feitas e estão a ser feitas. Ficou a perturbação: pelas coisas que podem e devem, mas não estão a ser feitas. E ficou ainda o lembrete que é preciso coragem, persistência e determinação: tanto para ultrapassar a timidez, como para lidar com equipas ou para trazer mudanças significativas. Porque bater contra a parede faz parte do processo.


*Accountability significa que quem desempenha funções de importância na sociedade deve regularmente explicar o que anda a fazer, como faz, por que faz, quanto gasta e o que vai fazer a seguir. Não se trata, portanto, apenas de prestar contas em termos quantitativos, mas de auto-avaliar a obra feita, de dar a conhecer o que se conseguiu e de justificar aquilo em que se falhou. (Fonte: Wikipedia)

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