Monday 31 January 2011

De todos e para todos?

No nosso sector, não são poucos aqueles que acreditam que trabalhar na área da Comunicação é uma questão de ‘jeito’. A Comunicação é essencialmente entendida como Relações Públicas, cujos principais requisitos são uma atitude simpática e um sorriso bonito.

No que diz respeito à produção de materiais de divulgação - outra tarefa na qual, no entender de alguns, se resume a Comunicação -, o critério que prevalece é o da estética, pelo que quase toda a gente se sente no direito de opinar, deixando questões de funcionalidade e eficácia em segundo lugar. Não poucas vezes, é a estética que ganha a batalha.

Podemos, igualmente, considerar aqui as parcerias e os apoios, a forma como são procurados e negociados. As instituições culturais colocam-se normalmente no lugar do parente pobre, parecendo ignorar o valor do seu ‘produto’ e oferecendo tudo e mais alguma coisa (e, em geral, sempre o mesmo) em troca de apoios necessários ou desnecessários, pequenos ou grandes.

Existem pessoas com e sem formação profissional a trabalhar na área da Comunicação no sector cultural: nos museus, nas galerias, nos centros culturais, nos teatros, nas orquestras; mas também nas editoras de livros, nas editoras discográficas, nas produtoras / agências artísticas, na rádio, na televisão. Como consequência, fala-se em muitos casos línguas diferentes. Perde-se demasiado tempo a discutir práticas que deveriam ser comuns, entendidas por todos. Pior, questões importantes são vistas como ‘pormenores’, esquisitices ou até má vontade e teimosia por parte de quem as defenda. Até agora não consegui encontrar uma resposta suficientemente convincente quando sou confrontada com a afirmação “Porque fazer assim, se todos os outros fazem o contrário?” (aprendi, no entanto, a desconfiar quando me dizem ”todos os outros”).

A Comunicação é uma área de trabalho que exige conhecimentos técnicos, tal como todas as outras. São necessários profissionais com formação adequada para desenvolver um plano que possa ajudar uma instituição cultural a atingir os seus objectivos no que diz respeito ao reconhecimento e à notoriedade, à formação de novos públicos, ao aumento dos existentes, ao acesso à sua oferta em geral - acesso este cognitivo, físico e financeiro. Estes objectivos são atingidos através do branding, do marketing, das relações públicas.

Num contexto de crise, num ambiente que sempre foi de grande concorrência, directa e indirecta, as instituições culturais não podem continuar a ser pouco exigentes com a sua comunicação. Não se pode ignorar a necessidade e a importância da criação e gestão de uma marca. Não se pode apenas produzir e esperar que o público venha. Não se pode esperar que as pessoas voltem se não forem criados e mantidos serviços de qualidade. Não basta pôr letras em cima de uma foto para se ter um cartaz. Não basta mandar um comunicado de imprensa para se criar uma relação com os meios de comunicação. Não basta uma atitude simpática, um sorriso bonito e bom gosto para que a Comunicação aconteça (se bem que contribuam muito para o resultado final).

Todas as acções e tarefas aqui mencionadas como exemplo, e muitas outras, necessitam de ser pensadas e executadas por pessoas com conhecimentos técnicos específicos. Mas diria mais. Ainda que uma equipa se pretenda a funcionar com partilha e análise da sua actividade, há decisões que não podem nem devem ser tomadas por maioria. Há decisões que devem ser confiadas a quem tem os conhecimentos necessários para as tomar.

O que é Comunicação, na verdade? É a forma como nos relacionamos internamente e com o mundo exterior, é um diálogo que se estabelece, é uma forma de ser, de estar e de se projectar. A Comunicação procura dar voz e imagem à missão e à visão da nossa instituição. A criação artística e a produção cultural não são hobbies. Porque é que a sua comunicação há-de sê-lo?

Thursday 27 January 2011

Monday 24 January 2011

Nós, os híbridos culturais

Quando decidi assistir em Novembro passado ao colóquio “Migrações, minorias e diversidade cultural”, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian, foi porque tinha muito interesse em ouvir falar dos ‘outros’. Acho que nunca tinha pensado em mim como ‘migrante’ ou ‘minoria’, nem nos anos que vivi na Inglaterra nem aqui em Portugal. Talvez devido às razões que me levaram a estes países e porque, se bem que de formas diferentes, rapidamente senti ‘fazer parte’ deles. Ao ouvir no colóquio da Gulbenkian os testemunhos de Portugueses que decidiram viver e trabalhar fora do seu país, ou de outros que optaram por voltar depois de muitos anos passados no estrangeiro, percebi que a minha posição era diferente daquela que tinha pretendido ocupar. O colóquio era sobre mim também.

Vivemos hoje num período de intensa interacção cultural. Nascemos num país, viajamos para outros, às vezes ficamos, voltamos atrás, partimos novamente. Encontramos e misturamos com pessoas de vários cantos do mundo. Damos e recebemos. Alguns anseiam por estes encontros, procuram-nos. A outros causam receio e criam a necessidade de defender a todo o custo algo que pretendem preservar. No entanto, duma forma ou doutra, somos todos ‘tocados’. Como é que nos definimos, então, no meio de tudo isto? Quem somos? O que será das nossas culturas num mundo globalizado? Iremos todos abraçar uma cultura global ou conseguiremos preservar a nossa cultura local? Ou, então, aprenderemos a ser ‘bilingues’? O livro Cultural Hybridity, do professor de História e Teoria Cultural Peter Burke, procura dar respostas a estas perguntas através da análise dos processos de encontro, interacção, intercâmbio e ‘hibridização’ cultural ao longo dos séculos. Procura colocar o debate sobre a globalização da cultura numa perspectiva histórica. Ao contrário do que se possa pensar, nada do que está hoje a acontecer é inédito.

O livro está dividido em cinco capítulos. No primeiro capítulo, Varieties of objects, Burke apresenta a variedade de ‘objectos hibridizados’. Exemplos de hibridismo cultural encontram-se na maioria dos domínios da cultura. Existem objectos híbridos (arquitectura, belas-artes, géneros literários, traduções), práticas híbridas (religião, música, língua, desportos, festivais, gastronomia, tipos de governação) e, finalmente, pessoas e grupos híbridos (filhos de pais de culturas diferentes, pessoas que se converteram – voluntária ou involuntariamente –, grupos que, por razões religiosas, políticas ou económicas, mudaram-se de uma cultura para outra).

O segundo capítulo, Varieties of terminology, foi para mim o mais interessante. O autor analisa a grande variedade de termos e teorias para falar sobre interacção cultural, ou seja sobre processos muito diversos nas suas especificidades, determinados por um maior ou menor envolvimento do agente humano. Os principais termos usados são metáforas tiradas da economia, zoologia, metalurgia, culinária e linguística. Respectivamente: empréstimo, hibridismo, cadinho, ensopado e, finalmente, tradução e crioulização. Burke vê fraquezas em todos eles, mas dá preferência ao termo linguístico, que considera ser o mais útil e menos enganador para explicar o processo de emergência de novas formas culturais através da mistura de antigas.

Estes encontros culturais ocorrem em diferentes situações, contextos e locais, analisados no terceiro capítulo, Varieties of situation. Para além da geografia e cronologia da ‘hibridização’, existe também uma sociologia. Quando há um encontro de culturas, há indivíduos ou grupos que participam mais que outros. Burke faz a distinção entre encontros de iguais e desiguais (por exemplo, os encontros dos missionários católicos com os povos da China ou da América Latina tiveram contornos muito diferentes); entre tradições de apropriação (Japão, Brasil) e resistência (Islão); e entre locais de encontro (as metrópoles e as fronteiras são particularmente favoráveis a intercâmbios culturais).

Há várias formas de reagir ao encontro com o ‘estranho’, como se vê no quarto capítulo, Varieties of responses. Desde a aceitação, que o autor chama “fashion for the foreign” (italofilia na Renascença; francofilia no século XVII; anglomania nos séculos XVIII e XIX), à resistência, que procura defender uma cultura fechando-a, isolando-a (a Espanha no século XVI ou o Japão no século XVII); desde a segregação cultural, que procura manter uma parte da cultura livre de contaminação estrangeira e leva as pessoas a viver uma espécie de vida dupla, à adaptação, um movimento duplo de descontextualização e recontextualização, que tira um elemento do seu contexto original e modifica-o para o ajustar a um ambiente novo.

No último capítulo, Varieties of outcomes, Burke considera as consequências da ‘hibridização’ a longo prazo e apresenta quatro possíveis cenários relativamente ao que possa vir a acontecer às culturas do mundo na era da globalização. Existe o cenário da homogeneização cultural. No entanto, e apesar dos sinais de uma cultura cada vez mais global, o autor acha que não se deve subestimar a criatividade da recepção e a renegociação dos significados. Os historiadores hoje em dia estão menos convencidos que movimentos semelhantes no passado, como helenização ou a romanização, tenham tido sucesso. Um outro cenário é o da resistência à globalização, o da revolta das regiões. Os resistentes não podem, como pretendem, fazer parar a história, mas Burke acredita que irão afectar as culturas do futuro. Uma outra possibilidade é a do bilinguismo cultural, a possibilidade de ficarmos todos bi-culturais, vivendo uma vida dupla. A fronteira está agora em todo o lado, disse o antropólogo Néstor García Canclini, tornar-nos-emos todos imigrantes. Por último, temos o cenário da crioulização do mundo, o nascimento de uma nova ordem, a formação de novos ecotipos, a cristalização de novas formas, a reconfiguração das culturas. Este á para Burke o cenário mais convincente.

Onde é que toda esta reflexão me deixa a mim? Sai da Grécia aos 23 anos e fui para Londres, onde o mundo se me abriu. Vivi a euforia do encontro com pessoas de todos os cantos da terra, da descoberta de outros modos de ser e de estar e de se manifestar, e volto a vivê-la sempre que lá regresso. Vim para Portugal, adoptei um segundo país e fui adoptada por ele. Tenho vivido quase tantos anos no estrangeiro quantos no meu país natal. Sou Grega, apesar de ter sempre sido uma Grega ‘atípica’, muito mais depois de viver no estrangeiro, o que me permitiu olhar para a minha cultura não só com orgulho mas também com um espírito mais crítico. Uma Grega ‘crioula’? Talvez. Sei que hoje em dia sou considerada tão ‘estrangeira’ lá como cá. Já não me incomoda. Considero que tenho sorte e sinto-me uma pessoa mais rica, por poder conviver e saber apreciar tantas ‘linguagens’ diferentes, dando e recebendo. Mas sou Grega, duma forma que se sente e não se pode explicar. Estou muito curiosa em ver o que vai ser o meu filho. Que, quando lhe disse que íamos ao Porto, me perguntou: “Que língua vamos lá falar?”.

Nota a 31 de Janeiro
Black? White? Asian? More Young Americans choose all of the above, um artigo no The New York Times.

Monday 17 January 2011

A julgar pela capa

Um dos grandes prazeres na vida é estar numa livraria sem razão especial, ou seja, não com a intenção de comprar um determinado livro, mas com o desejo de olhar para títulos, nomes e capas, ler sinopses, descobrir, ser tentada, não resistir, comprar, sair com uma série deles ansiosa para começar.

Em Maio passado tinha lido um artigo no jornal Guardian sobre as diferentes capas que o mesmo livro pode ter em países diferentes (ler o artigo aqui e ver imagens de capas aqui). “Porque é que os editores não replicam capas que tenham sido um sucesso noutros países?”, questionava o autor do artigo. Há designers e editores que pensam que leitores em países diferentes não precisam de capas diferentes. Outros profissionais destas áreas acreditam que se deve começar do zero e quando trabalham na capa de um livro já publicado, até evitam olhar para as capas existentes. Em defesa da criação de capas distintas, invocam-se no artigo razões culturais (“É uma coisa cultural, tão conduzida pelo gosto como o facto de se comerem coisas diferentes ao pequeno almoço em países diferentes”), de marketing (“A ficção literária é mais fácil de vender na Europa continental do que no Reino Unido ou nos EUA, por isso os editores podem ser menos óbvios na sua tentativa de chamar a atenção dos clientes” ou “O mercado de livros no Reino Unido é mais competitivo, todas as capas nas lojas gritam: 'Compra-me!'”) ou até de orgulho.

Foto: Observer
Pensei no que determina as minhas escolhas aquando das minhas ‘expedições ao desconhecido’. Não negarei que é a combinação de título e capa que faz com que pegue no livro de um autor que não conheço. É importante que a capa seja, para o meu gosto, elegante, atraente (muitas vezes elas não têm nenhuma imagem ou desenho; apenas letras e excelente design). A seguir leio a sinopse. E a decisão está tomada.
 
Acho que nunca questionei se a capa e a sinopse transmitem a mesma ‘essência’. Aliás, acho que nunca esperei que a capa fosse uma espécie de resumo do que vou descobrir dentro, ao contrário da sinopse, que é suposto despertar a minha curiosidade. Como também não me lembro de alguma vez me ter sentido enganada por ter detestado um livro cuja capa me tivesse atraído instantaneamente. Mas lembro-me do contrário: do desgosto que tive em dois casos em que estava a ler livros muito bons mas que, na minha opinião, tinham capas pirosas. Acho que até tentava escondê-los quando os lia em locais públicos. O primeiro tinha-me sido recomendado; sobre o segundo tinha lido no jornal. Doutra forma, estou certa que nunca os teria comprado se os tivesse simplesmente visto numa bancada juntamente com outros. Uma questão de estética, de gosto. E de branding também. Porque em muitos casos o design da capa identifica uma editora, que sendo considerada de qualidade e instantaneamente identificada visualmente, pode ganhar a batalha no meio da intensa concorrência.

Um dos assuntos mais discutidos no nosso meio profissional é o do cartaz de um espectáculo. O que é e o que não é. Para que serve ou não deve servir. Lembro-me que, quando li o artigo do Guardian, reencaminhei-o para alguns colegas, porque via muitas analogias entre capas de livros e cartazes de espectáculos.

O que é o cartaz? É um instrumento de promoção, de divulgação. Tem um carácter funcional. Serve para informar (o quê, quando, onde); serve para reforçar a imagem e identidade da entidade proponente; serve para atrair público. Ao contrário do que acontece noutros países, os suplementos culturais de certos jornais portugueses estão cheios de publicidade de espectáculos. Às vezes temos quatro anúncios a partilhar a mesma página. Assim como na rua encontramos uma série de cartazes de diferentes espectáculos colados uns ao lado dos outros. A concorrência é grande. Quem vai sobressair e atrair a atenção do público para ganhar clientes? Aquele que se destacar pelo bom design, ou seja, aquele que permitirá identificar rapidamente quem propõe, o quê e onde.


O que não é um cartaz? Não é uma extensão do espectáculo. Não deverá procurar transmitir a essência do mesmo em detrimento de outras funções, prioritárias, como o informar (acho, aliás, que só as pessoas que estão muito por dentro da criação de um espectáculo conseguem identificar ou sentir esta essência num cartaz). Não deverá servir para apresentar os nomes de todos os intervenientes, enchendo a imagem com manchas de letras e ajudando a enterrar a informação que é essencial para a promoção do espectáculo; na verdade, não se produz um cartaz para memória futura. Não deverá servir para a colocação dos logos de todas, sem excepção, as entidades que apoiam a produção. Quando prevalecem estas preocupações, não poucas vezes o resultado é um mau cartaz, um cartaz não funcional.

O processo de criação e aprovação de um cartaz pode tornar-se tenso, sobretudo quando a entidade proponente não é uma 'barriga de aluguer', mas sim, uma instituição com forte identidade (e forte identidade visual). O desafio para o designer é criar uma proposta que se enquadre na linha de comunicação da instituição, mas que seja ao mesmo tempo distinta para cada projecto. O desafio para os profissionais de Comunicação é defenderem a instituição e o projecto, tornarem o processo o mais flúido possível, procurando definir desde o início, em articulação com os intervenientes no espectáculo, os objectivos que se procura alcançar através do cartaz. A avaliação da qualidade e eficiência da proposta não pode nem deve ficar reduzida a apreciações estéticas (é bonito, não é bonito) ou de justiça (ou todos os nomes ou nenhum). A verdadeira questão é: Cumpre as suas funções? Informa? Identifica? Atrai? O resto deveria ser uma descoberta. E independentemente do que se descobrir, duvido que o público culpe o cartaz por não ter contado tudo…

Sugestão de leitura
Navigating the design minefield

Nota a 20 de Janeiro
A propósito das capas dos livros, um novo artigo no Guardian de hoje, Can you judge a book by its cover?  Muito relevante, mais uma vez, para a discussão dos cartazes dos espectáculos.

Monday 10 January 2011

A iniciativa privada em tempo de crise

O livro de Sir Peter Hall Cities in Civilization aborda as seguintes questões: como é que acontecem as idades de ouro de certas cidades? Porque é que a chama criativa arde de forma tão especial, tão única, em cidades e não no campo? O que é que faz com que uma determinada cidade, num determinado momento, se torne de repente imensamente criativa, excepcionalmente inovadora? Porque é que este espírito floresce durante alguns anos, em geral uma ou duas décadas, e depois desaparece tão repentinamente como apareceu?

Na primeira parte do seu livro, The city as cultural crucible (A cidade como cadinho cultural), Hall analisa as idades de ouro de Atenas, Florença, Londres, Viena, Paris e Berlim. Ao todo, o livro tem quase 1000 páginas. Levarei algum tempo para o acabar, mas já li o capítulo sobre Atenas. É sobre ela que quero escrever.

Foto: GNTO

Atenas, diz o autor, foi a primeira. A primeira em tantas das coisas que, desde aí, se tornaram importantes para a cultura ocidental: democracia, filosofia, escrita sistematizada da história, conhecimento científico, poesia lírica, tragédia, comédia, arte naturalista, arquitectura. Mas porquê ali? E porquê naquela altura? Haverá factores como a geografia, o clima, o crescimento económico, a abundância, a democracia, o pensamento livre, o facto de ter sido provavelmente a primeira cidade global. No entanto, nenhum desses factores constitui explicação suficiente para Peter Hall, sobretudo porque todos eles existiram, duma forma ou doutra, também noutras cidades, noutros territórios, que tiveram os ingredientes, mas esses não se juntaram com a ordem certa, da forma certa.

Para perceber o milagre que foi Atenas, diz o autor, é preciso ser historicamente mais específico. Atenas teve uma localização única, como centro comercial. Foi o comércio que trouxe a exposição às altas culturas do Oriente e também pessoas com muita energia e talento, provenientes de todo o mundo grego e do Mediterrâneo oriental, produzindo um cadinho étnico e cultural único. Depois, foram as invasões do norte que trouxeram novas influências e interromperam o contacto com o Oriente, obrigando a cidade a viver dos seus próprios recursos. A seguir, foi o desenvolvimento de um grande império comercial, que trouxe todos os bens do mundo civilizado aos mercados de Atenas e também dinheiro de impostos e escravos, fornecendo a base para uma muito particular democracia aristocrática. A sociedade e cultura atenienses baseavam-se na exploração: primeiro, existiam graças aos impostos que afluíam do império; segundo, Atenas mantinha aspectos críticos de uma sociedade aristocrática; terceiro, dependia significativamente do trabalho de estrangeiros ali residentes, que alimentavam a economia e foram responsáveis por muitos dos avanços ocorridos. Hall conclui que do conflito entre a ordem antiga e os pregadores da inovação gerou-se uma criatividade única: surgiu uma sociedade que combinava a fina discriminação e padrões críticos da velha sociedade com o cepticismo e inventividade de uma nova ordem.

Enquanto lia a análise de Peter Hall sobre o milagre de Atenas, procurava (inevitavelmente?) identificar ‘o que resta’. No entanto, encontrava mais semelhanças com os factores que levaram a cidade antiga à crise: o colapso económico provocado essencialmente pela guerra com Sparta, o individualismo (tão encorajado pelos Sofistas), o abandono da assembleia, a procura da riqueza pessoal, a perda de fé na e preocupação pela ‘polis’.

Nos últimos meses houve algumas iniciativas na capital grega que indicam que os Atenienses (mas também os Gregos em geral e pessoas de todos os lados do mundo) procuram no legado deixado pelos Gregos antigos respostas que os possam guiar no futuro, que os possam ajudar a redefinir valores e prioridades. No fim de Outubro foi organizada no novo Museu de Acrópolis uma maratona cultural sobre a relação da Grécia moderna e do mundo em geral com o mundo antigo. Um evento que juntou especialistas, intelectuais e artistas de todo o mundo e que durou 12 horas. Semanas depois, o novo Centro Cultural da Fundação Onassis abriu as suas portas com os “Diálogos de Atenas”, uma iniciativa que contou com a colaboração de oito instituições académicas internacionais e colocou a civilização grega no centro de uma reflexão sobre o seu papel na sociedade moderna. Foram organizados seis painéis sobre as temáticas “Identidade e alteridade”, “História e histórias”, “Razão e arte”, “Democracia e estado”, “Ciência e ética”, “Qualidade de vida”.

Foto: Centro Cultural Onassis
Foi na abertura deste novo Centro Cultural da Fundação Onassis que encontrei algo que liga a cidade moderna à antiga: a entrega livre e voluntária de parte da riqueza pessoal à cidade (na Grécia antiga os impostos eram considerados indignos de um cidadão livre, mas esta entrega voluntária era esperada e honorífica). Chamava-se leitourgia (serviço) e financiava a construção de edifícios públicos, eventos desportivos, banquetes, etc. No entanto, a leitourgia mais importante era a khoregia (palavra que podemos traduzir por ‘patrocínio’), que servia para pagar os membros do coro das tragédias e comédias.

A Fundação Onassis tem abraçado este espírito, tal como muitas outras fundações privadas, e a abertura do centro cultural é disso prova. Nas palavras do seu presidente, Antonis Papadimitriou: “A perda global de confiança das pessoas precisa de respostas de apoio. Mais que nunca, o teatro, a dança ou as artes plásticas podem providenciar este espaço necessário para a reflexão. O Centro Cultural Onassis, ao escolher apoiar a criação contemporânea num país virado sobretudo para o seu património, tem um papel determinante a desempenhar para dar sentido aos debates actuais” (jornal Le Monde de 23.12.2010).

O Estado Grego moderno, criado em 1830, beneficiou nas primeiras décadas da sua vida do apoio financeiro de muitos Gregos abastados da diáspora. Hoje em dia, o país continua a contar muito com a iniciativa privada em várias áreas da vida pública, inclusivamente na cultura. Nessa mesma avenida onde abriu agora o Centro Cultural Onassis, a Fundação Niarchos (que tinha sido o grande rival de Onassis) está a construir o novo edifício da Biblioteca Nacional e do Teatro Nacional de Ópera.

Em tempo de crise, económica e sobretudo social, encontra-se ‘refúgio’ na cultura. A iniciativa privada assume também responsabilidades, contribui, ‘devolve’ à sociedade. Uma ‘devolução’ voluntária e honorífica, que não se concretiza procurando fazer negócio com o estado. Afinal, parece que resta algo.

Friday 7 January 2011

Sugestão de leitura: Não há crises, apenas decisões difíceis

Relativamente a algumas das questões levantadas no meu post Um abraço azul, ou de outra cor qualquer, à crise, sugiro a leitura de um post no blog The Artful Manager, intitulado The fine art of self destruction, sobre o discurso de Russell Willis Taylor na conferência da League of American Orchestras no verão passado. No fim do post, poderão encontrar o vídeo do referido discurso.

Monday 3 January 2011

"No logo": o novo grande movimento político?

O livro No logo de Naomi Klein foi publicado em 2000. Encontrei referências ao mesmo quando preparava os posts Livremo-nos da ditadura dos logos e Logos tamanho XXL. Li-o pela primeira vez agora, numa edição que celebra o 10º aniversário da primeira publicação. O resultado de quatro anos de investigação de Naomi Klein dá um outro significado, maior, à expressão “ditadura dos logos”.

Na introdução, a autora explica o objectivo da sua pesquisa: “(...) o livro é uma tentativa de analisar e documentar as forças que se opõem ao domínio corporativo e de apresentar o conjunto particular de condições culturais e económicas que tornaram inevitável o aparecimento desta oposição.” Klein acredita que, à medida que cada vez mais pessoas descobrem os segredos da hegemonia das marcas na nossa sociedade e no nosso mundo globalizado, a sua indignação irá alimentar o próximo grande movimento político. A análise é feita nas três primeiras partes do livro (No space; No choice; No jobs), às quais se segue a quarta parte (No logo), onde a autora apresenta os indícios (menores e maiores) que fundamentam a sua teoria sobre a criação de um grande movimento anti-corporativo.

A primeira parte, No space (Sem espaço), examina a rendição da cultura e da educação ao marketing. Os marketeers deram total prioridade ao branding (processo de criação da marca), convencidos que para os consumidores não existem diferenças entre produtos; e que o que eles compram são as marcas – e com elas a promessa de uma ideia, uma experiência, um estilo de vida. Nos anos 90 a marca tornou-se na estrela, não patrocina a cultura, mas é ela mesma a cultura. Cidades, bairros, programas televisivos, concertos, revistas, eventos desportivos tornam-se em extensões das marcas que os patrocinam. O mesmo acontece nas escolas e universidades (concretamente nos EUA e no Canadá), onde, em troca de financiamento necessário para equipar estes estabelecimentos e para continuar com a investigação, as marcas tornam-se elas próprias em produtores de conteúdos educativos e controlam os resultados da investigação científica, impedindo a publicação daqueles que não lhes sejam favoráveis. Entretanto, pressionadas para optimizar os seus recursos financeiros para vender num mundo globalizado, as marcas promovem e vendem a ideia da diversidade. Assim, criando uma única campanha para o mundo inteiro, forçam os consumidores a falar uma língua e a absorver uma cultura (a da marca), o que leva Naomi Klein a afirmar que estamos aqui perante não uma ‘monocultura’, mas sim um ‘mono-multiculturalismo’.

A segunda parte, No choice (Sem escolha), descreve como a promessa de uma gama alargada de escolhas culturais foi traída. O desejo de expandir e controlar o mercado levou a fusões, compras e sinergias entre marcas, que assim tentam, e conseguem, expulsar os pequenos negócios e os negócios independentes. Igualmente preocupantes são para Naomi Klein as acções de censura corporativa, que determinam não só o que vai ser comercializado, mas o que é produzido também (desde a letra de canções às capas de revistas), enquanto em muitos casos, produtores, distribuidores e vendedores são propriedade das mesmas empresas (destaque especial à relação de algumas dessas empresas com a China). A autora fala ainda extensivamente das acções judiciais relacionadas com copyright e trademark, na tentativa de controlar a produção artística e cultural na reutilização e reconfiguração de linguagens e referências culturais partilhadas por todos, essencialmente quando se trata de artistas independentes. Chama, por fim, a atenção para o facto de se estar a perder o espaço onde possam existir opções não associadas às marcas, onde possa ser cultivado o debate e a crítica. A praça pública é substituída pelos centros comerciais, onde é tolerada apenas a linguagem do marketing.

A terceira parte, No Jobs (Sem emprego), examina as tendências no mercado de trabalho que estão a criar relações cada vez mais ténuas entre muitos trabalhadores e o emprego. Naomi Klein viajou até às Filipinas e entrou numa das zonas free-trade (presentes em vários países da Ásia e da América Latina), onde recolheu testemunhos sobre a exploração de milhares de trabalhadores que, contratados por terceiros e não directamente pelas marcas, fabricam os produtos comprados e comercializados por elas. A autora aborda ainda a exploração dos funcionários nos países do primeiro mundo, onde as marcas são ainda obrigadas a empregar pessoas nos pontos de venda. Aqui reina o part-time e os baixíssimos salários. Ou até a falta de salário. As marcas afirmam estar a empregar jovens, estudantes, que estão de passagem e que ganham experiência. A verdade é que se trata cada vez mais de pessoas com altas qualificações e que ficam por muito tempo, devido à falta de melhores oportunidades de emprego. O resultado, diz Naomi Klein, é o ressentimento e a total falta de lealdade para com o empregador, ainda por cima no meio de uma população jovem, que é o público-alvo prioritário das grandes marcas.

Fonte: www.woostercolletive.com
É o ataque aos três pilares sociais do emprego, das liberdades cívicas e do espaço cívico que, de acordo com Naomi Klein, está a dar origem ao activismo anti-corporativo. Na última parte do seu livro, No logo (Sem logo), a autora apresenta vários casos que vêm fundamentar a sua teoria sobre a criação de um movimento político. Fala-nos aqui do culture jamming, ou seja a prática de parodiar publicidades e de ‘assaltar’ cartazes para alterar as suas mensagens (destaque para o artista cubano-americano Jorge Rodriguez de Gerada, o performer canadiano Jubal Brown e o movimento Billboard Liberation Front); fala ainda do movimento Reclaim the Streets, que organiza eventos anti-corporativos em espaços públicos; mas fala sobretudo de inicitivas que denomina de “política externa localizada” - a mais eficiente, na sua opinião -, onde apresenta acções levadas a cabo por conselhos municipais, escolas, universidades, igrejas, sindicatos, outras instituições sem fins lucrativos e grupos de indivíduos, no sentido de pressionar as grandes marcas a assumir uma conduta ética e socialmente responsável e a dar provas da mesma.

Ao longo das mais de 450 páginas lemos sobre a filosofia, a actividade e as tácticas de marcas que fazem parte do nosso quotidiano e de muitas das quais somos regularmente ou pontualmente clientes: Nike, Adidas, Reebok, Starbucks, Coca-Cola, Pepsi, McDonald´s, Shell, BP, Ralph Lauren, Tommy Hilfiger, Esprit, Levi Strauss, GAP, IBM, Microsoft... Sentimo-nos revoltados e ao mesmo tempo esmagados, impotentes. Lembro-me de ter tido o mesmo sentimento de revolta e impotência ao ver dois filmes relacionados com esta temática que foram apresentados em Lisboa em 2010: Enjoy Poverty, do realizador holandês Renzo Martens, apresentado no âmbito do alkantara festival; e Black Gold, de Nick e Marc Francis, apresentado pelo programa Próximo Futuro. A retórica e as imagens do primeiro dominaram o meu consciente e subconsciente durante semanas. Depois de ver o segundo, fui incapaz de voltar a entrar num Starbucks; e tenho procurado maneiras de evitar os produtos da Nestlé (parece uma missão quase impossível). Mesmo assim, não deixo de me questionar sobre a diferença que pode fazer o facto de uma pessoa deixar de consumir os produtos de uma ou outra marca. O sentimento de impotência permanece connosco. Na altura que vi o Black Gold, encontrei uma resposta ao descobrir na internet a iniciativa Fair Trade Towns. E agora encontrei mais uma no livro de Naomi Klein, nas palavras de Owens Saro-Wiwa, irmão do escritor e candidato para o Nobel de Literatura Ken Saro-Wiwa (un dos líderes do Movimento para a Sobrevivência do Povo Ogoni - um povo ameaçado pela actividade da Shell na Nigéria - que foi executado pelo governo nigeriano). Diz Owens Saro-Wiwa: “É importante não fazer as pessoas sentirem-se impotentes. Apesar de tudo, têm que pôr gasolina nos seus carros. Se lhes dissermos que todas as companhias são culpadas, sentirão que não há nada a fazer. O que estamos realmente a tentar fazer, agora que temos estas provas contra esta companhia concreta, é deixar as pessoas sentir que podem ao menos ter a força moral de fazer uma companhia mudar”.