Monday 12 December 2011

La crise oblige? (ii) Desafios da programação

"A relevância para a comunidade é o primeiro e principal elemento de sustentabilidade."  WolfBrown In Is Sustainability Sustainable?

Perguntava-me há uns meses se estaríamos suficientemente atentos às mudanças que estão a ocorrer no meio sociocultural onde estamos a actuar. Tinha acabado de ler dois textos que me mostraram novos caminhos e que me ajudaram a estruturar as minhas ideias sobre a relação das instituições culturais com os públicos: Culture and Class de John Holden e The Excellence Barrier de Diane Ragsdale. Ambos defendiam a urgência, a importância e a necessidade de olharmos para fora; de tentarmos perceber os hábitos, gostos e expectativas das comunidades que pretendemos servir; de procurarmos relacionar-nos com elas, tornando a nossa oferta relevante para as suas vidas, criando a procura juntamente com elas. Envolvendo-as.

Fotografia da exposição In Your Face (Art Gallery of Ontario, 2007). Uma exposição de retratos coleccionados do público em geral para celebrar a individualidade e diversidade do Canadá.
Li agora um terceiro texto, o relatório de uma pesquisa desenvolvida nos EUA, no Reino Unido e na Austrália, intitulado Getting in on the Act: How arts groups are creating opportunities for active participation. Apresenta as várias formas de envolver os públicos (desde o espectador que é apenas receptor ao membro do público que se envolve como artista) e traz uma série de casos de estudo das mais variadas instituições e iniciativas. Traz ainda conclusões que vêm reforçar algumas das minhas ideias e confirmar algumas intuições sobre aquele que provavelmente será o caminho a seguir também para nós aqui:

- Acredita-se que, agora mais que nunca, as instituições culturais que irão prosperar no actual ambiente serão aquelas que irão criar novas e significativas oportunidades para as pessoas se envolverem (pág. 2);

- Não é ‘alguém’ ou ‘algo’ que dá forma à cultura. Todos nós estamos a dar forma à nossa cultura. Todos nós estamos a criar aquilo que é significativo, vibrante e real – os amadores e os peritos, as instituições e os indivíduos, os privilegiados e os carenciados, o mainstream e o alternativo (pág. 4);

- A tecnologia tem alterado fundamentalmente a forma como as pessoas interagem, aprendem e pensam sobre a cultura. O que é diferente agora é a capacidade sem precedente de uma pessoa média ter acesso, fazer e partilhar a arte e as suas ideias numa escala global (pág. 6);

- É importante reconhecer que os jovens que estão hoje a entrar na cena cultural não são esteticamente falidos. Muito frequentemente, os seus interesses criativos encontram-se noutro lugar- além da frequentação [de salas de espectáculo, museus, etc.] (pág. 11);

- Está-se a tornar cada vez mais difícil satisfazer toda a gente com uma mesma experiência. Por isso, o desenvolvimento de públicos não é apenas um problema de marketing. Em primeiro lugar, é uma questão de programação. Atrair a próxima geração de públicos e visitantes requer uma transformação na forma como se programa e não apenas melhor marketing (pág.11).

No meu último post colocava algumas questões sobre o impacto que a crise poderá ter na forma como são programadas as instituições culturais. Mesmo em períodos que não de crise, qualquer instituição, qualquer negócio, qualquer sector sabe que existem factores que afectam a sua actividade e que obrigam a reavaliações e adaptações. São factores externos - sociais, políticos, económicos, tecnológicos - que não controlamos, mas aos quais não podemos fugir e que nos colocam perante oportunidades e ameaças. São realidades às quais devemos estar sempre atentos. Diria, portanto, que a crise vem reforçar a urgência em despertarmos, em reagirmos, em não continuarmos a fazer tudo como sempre o fizemos.

Não acho que a crise vá fazer com que as pessoas percam a vontade de participar e de se envolver em actividades culturais. Antes pelo contrário, a procura poderá ser ainda maior. Não há dúvida que o público é muito mais cauteloso na forma como investe o seu, pouco, dinheiro. Mas continua a investir naquilo que considera essencial, imperdível, relevante, divertido, inspirador. Nos últimos tempos - e, sem dúvida, devido à crise – tem havido um decréscimo de espectadores em várias salas de espectáculos, mas continua a haver espectáculos que esgotam ou que, mesmo sem esgotarem, apresentam uma percentagem significativa em termos de ocupação. E é também neste momento de crise que se forma uma fila extensíssima para se visitar a exposição dos dinossauros na Cordoaria, apesar do preço alto do bilhete (e da fraca qualidade da exposição).

A questão que se coloca aqui é: sabemos o que é essencial, imperdível, relevante, divertido, inspirador para as pessoas que pretendemos servir para podermos, através das nossas propostas, continuar a manter viva a relação com elas? Talvez não… Penso que a maioria de nós pertence ao grupo que John Holden chama de ‘novos mandarins’: lutamos pelo acesso das pessoas à cultura, mas àquela cultura que nós consideramos válida; lutamos pela ‘democratização da cultura’ e não nos apercebemos que este conceito desenvolveu-se e transformou-se num outro, o da ‘democracia cultural’. Será que a crise conseguirá obrigar-nos a tomar consciência do que está a acontecer, há já algum tempo, à nossa volta; a abandonar o nosso lugar de ‘guardião’ para considerarmos também aquilo que os nossos vários públicos anseiam para experienciar, discutir, debater, criar, partilhar? Será que a crise nos pode levar a partilhar a responsabilidade da programação? Estaríamos a comprometer a qualidade da mesma?

A ideia da partilha da responsabilidade não é totalmente nova para as instituições culturais. Em todo o mundo há museus que escolhem os temas das suas exposições e criam os conteúdos das mesmas recorrendo às opiniões, conhecimentos, memórias e objectos de membros das comunidades que servem; quando visitei a Tate Britain há uns anos, encontrei ao lado das legendas escritas pelos conservadores do museu legendas escritas pelos visitantes – igualmente interessantes e, algumas delas, mais compreensíveis e mais tocantes; e, para dar mais um exemplo, o Concord Museum nos EUA celebra o seu 125º aniversário com uma exposição temporária - que tem o título muito sugestivo Crowdsourcing a Collection -, onde membros do público foram convidados a escolher e a falar de peças da colecção deste museu que têm um significado particular para eles. Também na área das artes performativas, existem experiências deste género. Por exemplo, em 2009, o Theatre Royal Statford East (conhecido como theatre of the people) iniciou um projecto de consulta junto do público para a preparação da programação do primeiro semestre de 2012 (ler aqui).

No entanto, apesar destas iniciativas mostrarem grande abertura por parte das instituições para um envolvimento mais activo do público, não deixam de ser decididas e ‘dirigidas’ por elas. Não se trata propriamente de uma partilha da responsabilidade de programar. A mudança que está a acontecer neste momento evidencia uma abertura no sentido da co-curadoria. Tal como os membros do público estão dispostos a financiar projectos culturais (multiplicam-se em todo o mundo as iniciativas de crowdfunding), há muita gente conhecedora e interessada, disposta a contribuir com os seus conhecimentos na escolha ou criação de um produto cultural. É o chamado crowdsourcing. Ian David Moss e Daniel Reid, autores de um dos mais inspiradores textos que li nos últimos tempos, Audiences at the Gate: Reinventing Arts Philanthropy Through Guided Crowdsourcing, exploram esta ideia e propõem um sistema do género da Wikipedia para a descoberta e financiamento de novos projectos artísticos. Neste contexto, pareceu-me de extrema relevância para o futuro das nossas instituições uma notícia que li há poucos dias sobre a rede Slowbizz, que pretende promover encontros entre amantes de música, dispostos a organizar pequenos concertos nas suas casas, e músicos talentosos, interessados em actuar nesse género de cenários (ler aqui).

Join the Slowbizz.com artists community from slowbizz on Vimeo.

Faz sentido para as nossas instituições culturais este caminho de partilha da responsabilidade da programação? Provavelmente mais do que nunca, sobretudo no caso daquelas que são públicas. Porque as mudanças na forma como se cria, se distribui e se consome a arte e a cultura (e o lugar onde isto acontece) são uma realidade; porque o volume de produção é tão grande que não seríamos capazes de conhecer e acompanhar tudo para nos mantermos actualizados e relevantes; porque existem, realmente, pessoas, que não profissionais, mas com excelentes conhecimentos e experiências e dispostas a partilhá-los. E porque, num momento em que as pessoas são obrigadas a fazer opções, as instituições culturais que sairão ‘vencedoras’ serão aquelas que melhor souberem envolver os seus públicos na sua actividade e manterem-se relevantes. Não sabemos tudo, mas penso que sabemos bastante para podermos gerir com honestidade, inteligência, criatividade e qualidade (com humildade também) a partilha de uma responsabilidade como a da programação de um espaço cultural com aqueles que pretendemos servir.


Mais leituras
Gripsrud, J., Hovden, J.F., Moe, Hallvard, Changing relations: Class, education and cultural capital (relatório sobre Noruega)

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