Monday 24 January 2011

Nós, os híbridos culturais

Quando decidi assistir em Novembro passado ao colóquio “Migrações, minorias e diversidade cultural”, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian, foi porque tinha muito interesse em ouvir falar dos ‘outros’. Acho que nunca tinha pensado em mim como ‘migrante’ ou ‘minoria’, nem nos anos que vivi na Inglaterra nem aqui em Portugal. Talvez devido às razões que me levaram a estes países e porque, se bem que de formas diferentes, rapidamente senti ‘fazer parte’ deles. Ao ouvir no colóquio da Gulbenkian os testemunhos de Portugueses que decidiram viver e trabalhar fora do seu país, ou de outros que optaram por voltar depois de muitos anos passados no estrangeiro, percebi que a minha posição era diferente daquela que tinha pretendido ocupar. O colóquio era sobre mim também.

Vivemos hoje num período de intensa interacção cultural. Nascemos num país, viajamos para outros, às vezes ficamos, voltamos atrás, partimos novamente. Encontramos e misturamos com pessoas de vários cantos do mundo. Damos e recebemos. Alguns anseiam por estes encontros, procuram-nos. A outros causam receio e criam a necessidade de defender a todo o custo algo que pretendem preservar. No entanto, duma forma ou doutra, somos todos ‘tocados’. Como é que nos definimos, então, no meio de tudo isto? Quem somos? O que será das nossas culturas num mundo globalizado? Iremos todos abraçar uma cultura global ou conseguiremos preservar a nossa cultura local? Ou, então, aprenderemos a ser ‘bilingues’? O livro Cultural Hybridity, do professor de História e Teoria Cultural Peter Burke, procura dar respostas a estas perguntas através da análise dos processos de encontro, interacção, intercâmbio e ‘hibridização’ cultural ao longo dos séculos. Procura colocar o debate sobre a globalização da cultura numa perspectiva histórica. Ao contrário do que se possa pensar, nada do que está hoje a acontecer é inédito.

O livro está dividido em cinco capítulos. No primeiro capítulo, Varieties of objects, Burke apresenta a variedade de ‘objectos hibridizados’. Exemplos de hibridismo cultural encontram-se na maioria dos domínios da cultura. Existem objectos híbridos (arquitectura, belas-artes, géneros literários, traduções), práticas híbridas (religião, música, língua, desportos, festivais, gastronomia, tipos de governação) e, finalmente, pessoas e grupos híbridos (filhos de pais de culturas diferentes, pessoas que se converteram – voluntária ou involuntariamente –, grupos que, por razões religiosas, políticas ou económicas, mudaram-se de uma cultura para outra).

O segundo capítulo, Varieties of terminology, foi para mim o mais interessante. O autor analisa a grande variedade de termos e teorias para falar sobre interacção cultural, ou seja sobre processos muito diversos nas suas especificidades, determinados por um maior ou menor envolvimento do agente humano. Os principais termos usados são metáforas tiradas da economia, zoologia, metalurgia, culinária e linguística. Respectivamente: empréstimo, hibridismo, cadinho, ensopado e, finalmente, tradução e crioulização. Burke vê fraquezas em todos eles, mas dá preferência ao termo linguístico, que considera ser o mais útil e menos enganador para explicar o processo de emergência de novas formas culturais através da mistura de antigas.

Estes encontros culturais ocorrem em diferentes situações, contextos e locais, analisados no terceiro capítulo, Varieties of situation. Para além da geografia e cronologia da ‘hibridização’, existe também uma sociologia. Quando há um encontro de culturas, há indivíduos ou grupos que participam mais que outros. Burke faz a distinção entre encontros de iguais e desiguais (por exemplo, os encontros dos missionários católicos com os povos da China ou da América Latina tiveram contornos muito diferentes); entre tradições de apropriação (Japão, Brasil) e resistência (Islão); e entre locais de encontro (as metrópoles e as fronteiras são particularmente favoráveis a intercâmbios culturais).

Há várias formas de reagir ao encontro com o ‘estranho’, como se vê no quarto capítulo, Varieties of responses. Desde a aceitação, que o autor chama “fashion for the foreign” (italofilia na Renascença; francofilia no século XVII; anglomania nos séculos XVIII e XIX), à resistência, que procura defender uma cultura fechando-a, isolando-a (a Espanha no século XVI ou o Japão no século XVII); desde a segregação cultural, que procura manter uma parte da cultura livre de contaminação estrangeira e leva as pessoas a viver uma espécie de vida dupla, à adaptação, um movimento duplo de descontextualização e recontextualização, que tira um elemento do seu contexto original e modifica-o para o ajustar a um ambiente novo.

No último capítulo, Varieties of outcomes, Burke considera as consequências da ‘hibridização’ a longo prazo e apresenta quatro possíveis cenários relativamente ao que possa vir a acontecer às culturas do mundo na era da globalização. Existe o cenário da homogeneização cultural. No entanto, e apesar dos sinais de uma cultura cada vez mais global, o autor acha que não se deve subestimar a criatividade da recepção e a renegociação dos significados. Os historiadores hoje em dia estão menos convencidos que movimentos semelhantes no passado, como helenização ou a romanização, tenham tido sucesso. Um outro cenário é o da resistência à globalização, o da revolta das regiões. Os resistentes não podem, como pretendem, fazer parar a história, mas Burke acredita que irão afectar as culturas do futuro. Uma outra possibilidade é a do bilinguismo cultural, a possibilidade de ficarmos todos bi-culturais, vivendo uma vida dupla. A fronteira está agora em todo o lado, disse o antropólogo Néstor García Canclini, tornar-nos-emos todos imigrantes. Por último, temos o cenário da crioulização do mundo, o nascimento de uma nova ordem, a formação de novos ecotipos, a cristalização de novas formas, a reconfiguração das culturas. Este á para Burke o cenário mais convincente.

Onde é que toda esta reflexão me deixa a mim? Sai da Grécia aos 23 anos e fui para Londres, onde o mundo se me abriu. Vivi a euforia do encontro com pessoas de todos os cantos da terra, da descoberta de outros modos de ser e de estar e de se manifestar, e volto a vivê-la sempre que lá regresso. Vim para Portugal, adoptei um segundo país e fui adoptada por ele. Tenho vivido quase tantos anos no estrangeiro quantos no meu país natal. Sou Grega, apesar de ter sempre sido uma Grega ‘atípica’, muito mais depois de viver no estrangeiro, o que me permitiu olhar para a minha cultura não só com orgulho mas também com um espírito mais crítico. Uma Grega ‘crioula’? Talvez. Sei que hoje em dia sou considerada tão ‘estrangeira’ lá como cá. Já não me incomoda. Considero que tenho sorte e sinto-me uma pessoa mais rica, por poder conviver e saber apreciar tantas ‘linguagens’ diferentes, dando e recebendo. Mas sou Grega, duma forma que se sente e não se pode explicar. Estou muito curiosa em ver o que vai ser o meu filho. Que, quando lhe disse que íamos ao Porto, me perguntou: “Que língua vamos lá falar?”.

Nota a 31 de Janeiro
Black? White? Asian? More Young Americans choose all of the above, um artigo no The New York Times.

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